O que leva um adepto a ser racista com os jogadores da própria equipe?

O percurso da seleção inglesa no Euro2020 ficou manchado por uma onda de insultos racistas. Depois de ter conseguido um dos melhores resultados das últimas décadas, ao chegar à final da competição, a derrota nos penaltis foi atribuída a três jogadores: Marcus Rashford, Jandon Sancho e Bukayo Saka. Os futebolistas foram alvo de comentários racistas e ofensivos e até de ameaças de morte.

caso ganhou uma dimensão de tal forma preocupante que o próprio primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, condenou os atos através de uma publicação do Twitter: “Os jogadores da equipa inglesa merecem serem tratados como heróis, não [vítimas de] insultos racistas nas redes sociais. Os responsáveis por este terrível abuso deviam ter vergonha.”

Foto: Reprodução/ Twitter

príncipe William, neto da rainha Isabel II, escreveu também no Twitter que é “totalmente inaceitável que os jogadores tenham que suportar esse comportamento repulsivo. Todos os envolvidos devem ser responsabilizados.”

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Também a Federação Inglesa de Futebol condenou os comentários racistas através de um comunicado. “A FA condena veementemente todas as formas de discriminação e está chocada com o racismo online que tem sido dirigido a alguns dos nossos jogadores de Inglaterra nas redes sociais. (…) Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para apoiar os jogadores afetados, ao mesmo tempo que pedimos as punições mais duras possíveis para todos os responsáveis”.

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O Polígrafo questionou especialistas na temática do racismo para perceber o que leva os adeptos a proferir insultos racistas contra os jogadores da própria equipa que apoiam. “Por muita celebração que haja, o racismo está tão profundamente enraizado nas estruturas mentais e sociais da sociedade, que faz com que as pessoas à mínima ‘desculpa’ ataquem logo os jogadores – mesmo sendo da sua equipa – tendo por base a questão racial”, responde Pedro Almeida, antropólogo especializado em questões raciais no desporto e investigador no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA).

“Muitos [adeptos] não compreendem o quão violento isso é porque, na verdade, estão a desumanizar o jogador“, acrescenta. Para o antropólogo, é necessário recuar à origem dos estereótipos raciais para entender este fenómeno, em particular à “forma como o outro – e neste caso específico a população negra – foi sendo construído no imaginário nacional” dos países que tiveram colónias em África. “As próprias práticas coloniais foram sendo dirigidas com base numa suposta inferioridade e desumanização dos povos africanos. Muito desse imaginário – de uma certa inferioridade intelectual e até civilizacional – está presente, de certa forma, nas sociedades ocidentais, especialmente nas que tiveram um passado colonial“.

“O RACISMO ESTÁ TÃO PROFUNDAMENTE ENRAIZADO NAS ESTRUTURAS MENTAIS E SOCIAIS DA SOCIEDADE, QUE FAZ COM QUE AS PESSOAS À MÍNIMA ‘DESCULPA’ ATAQUEM LOGO OS JOGADORES – MESMO SENDO DA SUA EQUIPA – TENDO POR BASE A QUESTÃO RACIAL”.

O investigador realça que os jogadores de diferentes etnias têm de provar continuamente o seu valor em campo e cita Lilian Thuram – ex-jogador da seleção francesa que se tem dedicado à luta contra o racismo dentro e fora das quatro linhas: “Eu hoje sou jogador de futebol, sou uma estrela, mas quando deixar de jogar vou voltar a ser um emigrante, um negro.”

Pedro Góis, professor de Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, destaca que “o racismo não é apenas um crime, é algo que corrói as nossas sociedades pela estupidez que transporta“. “Há muito tempo que a ciência nos mostrou que a cor da pele não tem qualquer influência nos nossos atos sociais nem na nossa inteligência, nem de facto na nossa biologia. É completamente parvo pensar que aqueles jogadores de futebol falharam por serem negros ou acertaram por serem brancos”, justifica.

“HÁ MUITO TEMPO QUE A CIÊNCIA NOS MOSTROU QUE A COR DA PELE NÃO TEM QUALQUER INFLUÊNCIA NOS NOSSOS ATOS SOCIAIS NEM NA NOSSA INTELIGÊNCIA, NEM DE FACTO NA NOSSA BIOLOGIA”.

Além disso, o sociólogo afirma que o ónus da questão deve estar sempre no agressor e não nas vítimas. “A capacidade de agredir está sempre presente, exceto nos momentos em que os indivíduos retiram ao agressor a capacidade de atuarem” – como, por exemplo, quando marcam golos e conquistam vitórias para a equipa. E prossegue: “O agressor é que tem sempre um complexo de inferioridade, tem sempre a culpa da sua ação. O agressor é que é o criminoso. Nós não podemos culpar a vítima por ter falhado ou por ter feito alguma coisa errada. Não fez nada de errado nem falhou.”

O impacto dos insultos na mente dos jogadores

As imagens captadas pelos fotojornalistas durante o jogo entre Inglaterra e Itália mostram o estado em que ficaram os jogadores por terem falhado os penaltis: completamente desolados. Para além da responsabilização própria, Marcus Rashford, Jadon Sancho e Bukayo Saka viram as suas redes sociais invadidas com comentários racistas e insultos. Estas frases poderão ter impacto na saúde mental dos jogadores e até na prestação em campo em jogos futuros.

“Depende da própria estrutura do atleta: há atletas que são inabaláveis e não se deixam intimidar ou abalar pelas críticas e pelos comentários, mas há atletas que precisam de apoio em função do contexto e da situação que ocorreram. É importante ver até que ponto os níveis de autoconfiança foram abalados“, explica Gaspar Ferreira, psicólogo especialista na área da Psicologia do desporto e da performance.

Na equipa da seleção inglesa – como acontece em vários clubes de maiores dimensões – existem psicólogos que ajudam os jogadores a atingir um bem-estar mental durante os torneios e campeonatos, lembra o especialista. “É necessário fazer esta avaliação, perceber junto do atleta se a sua autoconfiança foi beliscada, se tem pensamentos negativos, se tem perda de autoeficácia. Se assim for, o que se impõe é estruturar o pensamento, ajudar o atleta a reconstruir o seu sistema de crenças e, em articulação com o treinador, criar condições para ter novamente oportunidade para recuperar a confiança”.

“DEPENDE DA PRÓPRIA ESTRUTURA DO ATLETA: HÁ ATLETAS QUE SÃO INABALÁVEIS E NÃO SE DEIXAM INTIMIDAR OU ABALAR PELAS CRÍTICAS E PELOS COMENTÁRIOS, MAS HÁ ATLETAS QUE PRECISAM DE APOIO EM FUNÇÃO DO CONTEXTO E DA SITUAÇÃO QUE OCORRERAM. É IMPORTANTE VER ATÉ QUE PONTO OS NÍVEIS DE AUTOCONFIANÇA FORAM ABALADOS”.

O psicólogo considera que “tem de haver consequência pelos atos de violência, sejam estes nas redes sociais ou em campo” e lembra que este tipo de situações pode ter um impacto grande nos jogadores, principalmente nas equipas infantis. “As crianças podem mesmo ser traumatizadas. Se não houver esse apoio, essa sensibilidade, particularmente nos clubes menores, os jovens acabam por não desenvolver capacidade de resiliência para lidar com isto”, acrescenta.

Nas redes sociais, onde se propagaram os insultos racistas, surgiu também uma onda de apoio aos três jovens jogadores ingleses. Entre as várias partilhas enaltecendo o talento dos jogadores e criticando as manifestações insultuosas, está também um texto de Éder, o jogador da seleção portuguesa que marcou o golo da vitória de Portugal no Euro2016 e que entregou, este ano, a taça do campeonato à Itália: “Continuo a pensar nestes três talentosos jogadores de futebol, jovens que representaram o seu país, dando o melhor de si, que agora não só se culpabilizam por isso, mas ainda por cima têm de lidar com abusos racistas”, escreveu Éder acrescentando que o episódio o deixa “zangado”. “Provavelmente 99% das pessoas negras que viam o jogo sabiam logo que isto ia resultar num contragolpe de racismo. Isto mostra que o racismo está muito presente, não apenas no mundo do futebol, mas em toda a nossa sociedade”, prosseguiu o jogador.

Este ambiente hostil – que não se limita às questões raciais – está tão enraizado na cultura desportiva que os atletas são preparados para lidar com estas situações. “Um atleta de elite tem de estar preparado para lidar com situações extremas – e não estou a compactuar com a violência ou o racismo – sob pena de poder prejudicar a sua equipa caso ceda a uma preocupação. Ou até prejudicar a sua carreira se não souber reagir, de forma adequada ou proporcional, aos insultos”, explica Gaspar Ferreira.

“UM ATLETA DE ELITE TEM DE ESTAR PREPARADO PARA LIDAR COM SITUAÇÕES EXTREMAS – E NÃO ESTOU A COMPACTUAR COM A VIOLÊNCIA OU O RACISMO – SOB PENA DE PODER PREJUDICAR A SUA EQUIPA CASO CEDA A UMA PREOCUPAÇÃO”.

Neste Europeu de futebol foram ainda registados casos de cânticos homofóbicos – que envolveram Cristiano Ronaldo durante o jogo de Portugal contra a Hungria – e ameaças de morte nas redes sociais – dirigidas ao sueco Marcus Berg por ter falhado um golo de baliza aberta, no jogo com Espanha.

Os casos de Marega e de Quaresma

Em fevereiro de 2020, ao minuto 71 do jogo entre o Futebol Clube do Porto e o Vitória de Guimarães, o jogador portista Moussa Marega cansou-se de ouvir os insultos oriundos da plateia. Mesmo contra a opinião dos seus colegas e do treinador, o jogador pediu para ser substituído e abandonou o campo, num gesto de protesto contra os comentários racistas de que era alvo.

A decisão do jogador motivou uma onda de apoio. Uma das mensagens veio do antigo jogador da seleção nacional Ricardo Quaresma: “Também eu já fui, várias vezes, vítima de racismo dentro e fora de campo. A cor da pele ou a raça do jogador não podem ser argumentos para ofender e tentar desconcentrar um jogador de futebol”, escreveu nas redes sociais.

Foto: Reprodução/ Facebook

“Este é um exemplo interessante: um estádio como o do Vitória de Guimarães que agride o Marega, é o mesmo estádio que aplaude de pé o Quaresma que, por acaso, é agora jogador do Guimarães. Há esta incapacidade de ser coerente quando se é racista. E isso é um defeito, não é uma qualidade”, afirma Pedro Góis.

A entoação de cânticos racistas ou discriminatórios em eventos desportivos, assim como a prática de atos que incitem ao racismo, à xenofobia, intolerância ou violência são considerados crime em Portugal, ao abrigo da lei n.º 39/2009. Por isso, a Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto decidiu punir o clube Vitória de Guimarães com uma “sanção acessória de realização de três espetáculos desportivos à porta fechada”.

“O racismo é crime perante a maioria das leis dos países europeus, a questão é que é muito difícil encontrar essa punição e enquanto ela não começar a acontecer – em primeiro uma punição social, em segundo uma punição jurídica – é muito difícil terminarmos este fenómeno“, afirma o sociólogo, reforçando que, além de crime, o racismo “corrói as nossas sociedades pela estupidez que transporta”.

“É MUITO DIFÍCIL TERMINARMOS ESTE FENÓMENO. (…) O RACISMO “CORRÓI AS NOSSAS SOCIEDADES PELA ESTUPIDEZ QUE TRANSPORTA”.

O Polígrafo realizou, na altura do caso do Marega, um fact check sobre as condenações por racismo em Portugal. Segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Justiça, entre 2007 e 2018, apenas 13 pessoas foram condenadas por crimes de discriminação racial ou religiosa, incitamento ao ódio e à violência, tendo todas elas ocorrido no ano de 2008. Segundo dados disponibilizados no site da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial, entre 2005 e 2017 houve 12 condenações e em 2018 e 2019 registaram-se 16 condenações.

Números sobre o racismo no futebol

Os casos de racismo descritos não são episódios isolados. Segundo o relatório anual da Kick It Out – uma organização de igualdade e inclusão no futebol inglês –, na época 2019/20 aumentaram as denúncias de casos de discriminação no futebol inglês. Entre as equipas profissionais foi registado uma subida de 53% no número de denúncias por discriminação racial (passando de 184 para 282) e 95% no que toca à orientação sexual (de 60 para 117). Nas camadas mais jovens, o número de denúncias diminuiu, mas a organização lembra que as competições estiveram suspensas durante grande parte da época, devido à pandemia Covid-19.

Entre janeiro e dezembro de 2019, 30% dos adeptos ingleses afirma ter presenciado comentários ou cânticos racistas durante um jogo de futebol, enquanto 71% admite ter visto comentários racistas dirigidos a jogadores nas redes sociais.

Segundo o estudo Black Lives Matter in Football, 60% dos inquiridos consideram que existe racismo no futebol português. A perceção dos homens e das mulheres sobre a discriminação é diferente: enquanto 73,2% das mulheres responderam que havia racismo no futebol, a percentagem de homens a responder “sim” desce para 50%. Entre os participantes com 40 anos ou mais, há 62,6% que afirma não existir racismo no futebol português.

“Eu vou ao futebol desde criança e sempre me lembro dos insultos”, recorda Pedro Almeida. “Já ouvi insultos racistas em todos os estádios, isso está perfeitamente normalizado e banalizado“, afirma, acrescentando que “muitas pessoas não percebem exatamente o quão violento é para um jogador negro ou cigano ser alvo de insultos”.

Gaspar Ferreira considera que é preciso mudar a cultura do futebol – e não só. “É verdade que num meio competitivo, a cultura desportiva legitima muito a irracionalidade dos comportamentos dentro dos estádios. Aceita e tolera. Isso mostra que temos de mudar esta cultura, promover uma competição sã em que se respeita o adversário”, afirma, destacando a importância de “educar as pessoas e civilizá-las”.

O que fazer para reduzir o racismo no desporto?

UEFA, a FIFA e as federações de futebol de vários países (incluindo Portugal) têm assumido uma forte postura contra o racismo, a homofobia e a discriminação no futebol. Durante o Euro2020, várias equipas – incluindo a seleção de Inglaterra – protestaram contra o racismo no desporto, ajoelhando-se no início dos jogos. Esta movimento começou com o jogador da NFL Colin Kaepernick que se ajoelhou durante o hino dos Estados Unidos, em protesto contra a violência policial contra negros.

Foto: © EPA / Julio Munoz / POOL

“As próprias entidades dizem que têm um plano para erradicar o racismo. Isso era bom. Mas temos vários campos: temos o jurídico através de punições, de penas, de multas e de alguns casos com penas de prisão – não acontece aqui, mas acontece noutros países como o Reino Unido”, destaca Pedro Almeida. No entanto, o antropólogo considera que a luta contra o racismo vai além das punições e deve foca-se na educação. O especialista considera que é preciso “tentar mostras às pessoas o que é o racismo, como é que ele surge na história, de que forma se perpetua e de que forma continua a inferiorizar e colocar numa posição de subalterna as populações que não são percebidas como brancas – no caso português serão, sobretudo, a população negra e a população cigana, embora haja outras”.

Gaspar Ferreira acredita que o racismo pode também ser combatido através de bons exemplos de desportivismo, destacando a importância de atribuir o “cartão branco” aos jogadores, treinadores e adeptos. “Os árbitros podem premiar as equipas, os jogadores e os adeptos com o cartão branco. Acho que este reconhecimento do seu comportamento exemplar deveria ser atribuído em todos os jogos, à semelhança do prémio de melhor jogador. Se promovermos estas imagens de reconhecimento positivo, haverá exemplos para seguirmos”, afirma o psicólogo.

“Nós queríamos que isto fosse um interruptor: desligássemos e o racismo desaparecia, mas isso não é possível”, afirma Pedro Góis. “Necessitamos de trabalhar muito ainda com educação, de trabalhar com os media, de trabalhar muito com os jornalistas – porque também há jornalistas racistas – e ajudarmos a que todos nós percebamos que o racismo não faz sentido. E é por não fazer sentido que deve terminar”, conclui.

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