A perseguição às religiões de matriz africana diante do projeto de poder das religiões cristãs. Esse é o tema do livro “Intolerância Religiosa” (Pólen Livros/Selo Sueli Carneiro), escrito pelo babalorixá e pesquisador mestre e doutor em Semiótica pela Universidade de São Paulo, Sidnei Nogueira. O livro é o oitavo título da Coleção Feminismos Plurais, coordenada pela mestra em Filosofia Política Djamila Ribeiro. A Coleção tem publicado obras escritas por pessoas negras por uma perspectiva racial crítica e tratam de conceitos recorrentes no debate público do país.
Em entrevista à editoria de Justiça da CartaCapital, o babalorixá apresentou o livro, a quem ele se destina e como estão atualmente os índices públicos de casos de “discriminação religiosa”, como ataques e depredações a terreiros, espaços geográficos dedicados à prática coletiva das religiões de matriz africana.
Nogueira também introduz algumas questões tratadas em sua obra, como diferença intolerância religiosa de racismo religioso, e a apresentação do que chama de epistemologia de terreiro. Vale dizer que epistemologia é o campo de estudo que analisa a construção de um saber.
Ao final, o babalorixá comenta a partir dessa epistemologia, desse saber, suas impressões sobre o atual quadro de pandemia que assola o planeta e que, no Brasil, possui a agravante de acontecer sob o despreparado governo federal. Para Nogueira, o tratamento à doença não pode ser visto sob a perspectiva individual, mas sim coletiva. Em outras palavras, a sociedade que adoeceu precisa, enquanto sociedade, se curar. “Adoecemos coletivamente e sem distinção. Não creio que possamos ignorar isso”, afirma.
Confira a entrevista na íntegra:
CartaCapital: Como foi o processo de escrita do livro e a quem ela se destina?
Sidnei Nogueira: Foi uma imensa satisfação. Eu já estava muito conectado ao tema por conta do meu ativismo, pesquisas, palestras, cursos e diálogos sobre o assunto. Os últimos cinco anos foram marcados por uma certa abertura das estatísticas relacionadas às perseguições dos terreiros cuja tradição é de matriz africana. O disque 100 foi um avanço neste sentido também e pude trabalhar com estes dados. Em outro sentido, muitas vezes, a escrita se revelava dolorosa. Eu não sou um estrangeiro em relação ao problema, eu faço parte dele, eu sou um igualmente subalternizado, satanizado e perseguido porque estou também na condição de Babalorixá de uma comunidade tradicional de terreiro. Desse modo, não foram poucas às vezes em que eu me via muito identificado com as histórias mais nefastas e absurdas de racismo religioso e eu me perguntava sobre os porquês de um movimento que só torna a sociedade mais desigual e mais violenta. Isso me moveu à escrita do terceiro capítulo como espaço de compreensão dos porquês e de uma possível cura que eu denomino de cura epistemológica.
A quem o livro se destina? Eu escrevi com uma dupla pertença Babalorixá e Professor, ambos desvalorizados, subalternizados e marginalizados pelo sistema político vigente no Brasil atual, mas eu precisava fazê-lo. Escrevi aos meus alunos dos ensinos fundamental e médio, aos meus alunos do ensino superior dispostos a pensar e a serem provocados porque, de verdade, o livro é uma grande partilha das minhas próprias inquietações. A obra é uma “conversa de terreiro”. Todos certamente gostarão de ler. Todos deveriam. Eu, particularmente, gostaria que os cristãos lessem também. Eu pensei neles ao escrever e não o vislumbrei de modo antagônico, mas como parte da multiplicidade existencial também do meu criador.
CC: Ao escrever Intolerância Religiosa o que esperava em relação aos sentidos que ela poderia produzir nos seus leitores?
SN: Esta foi uma das minhas principais preocupações. Quais os efeitos de sentido do discurso? O que o texto deveria promover também no sentido de ebó [processo de limpeza espiritual na tradição de religiões de matriz africana] epistemológico, ou seja, saberes que curam, que restauram, que reencontram a verdade sobre o racismo religioso no Brasil. Desse modo, o texto se pretende capaz de expandir e libertar mentalidades. Eu penso muito que só se pode receber a cura por meio da verdade sobre a doença. O racismo é assim como o colonialismo uma ferida aberta e muito infeccionada. Sendo assim, era preciso falar sobre um tema tão delicado com tranquilidade, mas também com muita franqueza. Eu espero que os leitores recebam o texto como generosidade. Como se estivessem em uma roda de conversa em família. Que possam, a partir da leitura, repensar ou fortalecer o que já sabem sobre a intolerância religiosa no mundo e o racismo religioso no Brasil.
CC: Poderia nos explicar a diferença entre intolerância religiosa e racismo religioso?
SN: A intolerância religiosa é uma categoria maior e mais universal. A categoria generalizante. Mas ela não dá conta do racismo porque ela é igualmente cordial, gentil, suportável e feita para justificar a própria intolerância. Ela é um grande eufemismo que diz que é tolerável não tolerar e que os sistemas de crenças podem não ser tolerados e toleráveis. Isso é muito comum em um conjunto semântico de ordem eurocêntrico. A intolerância normalmente incide sobre a crença. Não tem como origem a pessoa, a própria origem da crença e, neste caso, a crença pode existir desde que apartada da minha territorialidade. Obviamente, também é possível se verificar extremismos na intolerância.
Todavia, o que temos no Brasil em relação às TMA – Tradições de Matriz Africana é muito específico. O racismo religioso não tolera existências. Ele desemprega, divide famílias, coloca filhos para fora de casa, violenta, segrega, fomenta o ódio e até mata. A origem negra em oposição às religiões hegemônicas quer negar a existência. Os sistemas de crenças negros aos olhos dos racistas religiosos são uma violação. O simples ato de existir e marcar a diferença é uma violação que se fortalece por meio da força semântica do binarismo Deus versus Demônio. O racismo religioso é marcado pela necessidade da existência de uma crença única e esta crença se fortalece também por meio dele porque cria um demônio com vistas à oferta do salvador.
CC: Na obra, o senhor fala que Intolerância não atende as categorias semânticas implicadas nos sentidos que mantém o racismo em nosso país. O que isso significa?
SN: Porque esta categoria é eurocêntrica e ela é por si só cordial, gentil, generosa. Trata-se da negação e aceitação de algo com o qual se pode viver. É preciso suportar a própria intolerância. É esta ideia que está no centro da expressão intolerância religiosa. A própria palavra “intolerância” tem como raiz o verbo tolerar e esta categoria diz que a pessoas podem não tolerar a fé do outro.
CC: De acordo com os dados apresentados no livro, pode-se dizer que nos últimos dois anos o racismo religioso vem se agravando?
SN: Sim. Sem dúvidas. Neste ano, o racismo religioso se agravou muito. De acordo com os dados do Disque 100, em 2016, tivemos 759 denúncias de “discriminação religiosa”; em 2017/18, a média foi de 500 denúncias anuais e, em 2019, somente no primeiro semestre, 354 denúncias, ou seja, certamente em 2019 a situação se agravou novamente. Vale destacar que não é algo valorizado pelo governo que assume a presidência em 2019 e isso certamente, fortalece as subnotificações. A polarização também religiosa e usada para o que chamo de proselitismo político têm agravado as perseguições e os movimentos de satanização das religiões de origem negra e isso pode ser visto refletido no discurso espalhado no cotidiano das pessoas principalmente nas redes sociais.
CC: Um dos capítulos mais instigantes do livro fala em uma Epistemologia de terreiro. O que seria isso?
SN: Eu acredito que parte da cura do racismo religioso passa por um necessário movimento que eu denomino “nós falaremos por nós”. Os racistas precisam nos ouvir. Precisam saber quem somos e precisam entender que fora da cristandade e das religiões hegemônicas também existe ética, moral, costumes, pensares e fazeres que estão no interior e na vida cotidiana das múltiplas existências que habitam o mundo. Porque aquele discurso do “somos todos iguais e filhos de Deus” não passa de uma grande falácia. Não somos todos iguais. Uma epistemologia de terreiro é constituída por um conjunto de saberes, pensares e fazeres do povo de terreiro. Passa pela exuêutica [expressão que designa a junção de Exu, orixá da comunicação, com hermenêutica, campo de estudo que analisa os métodos de interpretação], pela lógica das encruzilhadas, pela cabaça-útero, pelo culto ao bom caráter, pela percepção do humano como multiplicidade do criador, pela negação da mentira, pela valorização da palavra proferida, pela importância das trocas e da geração coletiva do axé, a valorização da antiguidade, a importância da infância como suporte das continuidades e uma série de outros conceitos filosóficos que edificam a existência dentro destas comunidades.
CC: Como interpretar a pandemia do coronavírus a partir desta epistemologia de terreiro?
SN: Nós temos uma divindade que está associada à doença útil. A doença que fortalece, que evita a morte prematura, a doença-alerta. O senhor Obaluaiyê. Isso é impensável no ocidente. Aqui, no ocidente, tanto a doença quanto os doentes são normalmente satanizados. Por outro lado, temos também os Ajogun associados à doença – conjunto de guerreiros que lutam contra a existência humana. Entre eles está a doença não útil, a doença que mata prematuramente. Eu acredito que já estávamos muito doentes. Uma sociedade que se crê de mão única, que não pode retornar. Uma sociedade que nega as verdades e justifica o caminho único por meio de mentiras, violência, ódio não pode se manter saudável por muito tempo. Uma sociedade que acredita que a justiça pode ser feita individualmente e com as próprias mãos, que persegue e mata seus povos originários, populações quilombolas, que estigmatiza o que considera diferenças, fomenta perseguições e mortes existenciais, que nega memórias importantes não pode ficar saudável por muito tempo. Adoecemos coletivamente e sem distinção. Não creio que possamos ignorar isso.
“Por um lado, ofendemos o senhor da doença que se evidencia e, por outro, produzimos o fortalecimento do Ajogun doença que agora só pode ser combatido com a verdade, com a generosidade, com a compreensão, com a igualdade e com a coletividade. A cura não será individual. Se adoecemos coletivamente, devemos nos curar coletivamente também.”
CC: Durante as medidas de isolamento, o presidente atual insistiu na abertura de templos religiosos como parte de atividades essenciais. Entretanto, é sabido que a aglomeração de pessoas é causa de disseminação do vírus. Como o senhor avalia essa questão?
SN: Como disse, a cura deve ser coletiva. Adoecemos coletivamente e devemos, na medida do possível, buscar uma cura também coletiva. Neste momento, estamos em uma sociedade que naturalizou a doença e, agora, naturaliza a morte, a dor, o sofrimento, as desigualdades. Está posto que o caminho presidencial para lidar com as crises é único: somatório de mentira e extermínio do desigual. O “e daí” presidencial diz muito sobre isso. A exclamação está recheada de um “não estou nem aí”, do “o que é mais uma morte?”, “parem de reclamar. Não há motivos para isso.”, “não está acontecendo nada”. Nós de comunidades tradicionais de terreiro acreditamos na Ciência e temos Orixás que a são – principalmente Ossãin e Obaluiyê, e há muitos Orixás associados à Ciência. Não podemos desrespeitar o que está acontecendo, não podemos colocar a vida de quem quer que for em risco. Todas as vidas importam. Não há uma existência mais ou menos importante como nos quer fazer crer o capitalismo e a necropolítica. A postura presidência é inaceitável até para alguém que se diz cristão. Não é?