Os milhões de corpos negros que habitam o fundo do mar

750 seres humanos. Não é um número pequeno. Cruzar fronteiras, a tragédia migratória que acomete africanos todos os dias em busca de uma vida digna.  Europa, 14 de junho, um barco de pesca naufraga em águas gregas com 750 pessoas, imigrantes e negros. Foram  80 mortos. Uma tragédia anunciada. As autoridades da Grécia souberam do naufrágio muitas horas antes e nada fizeram. Manifestações bem modestas pedindo respostas ao governo grego tomaram as ruas de Atenas. O país resolveu decretar três dias de luto. 

Dois dias atrás, outro barco naufraga, desta vez em águas espanholas, nas ilhas Canarias, aparentemente levando 61 pessoas. Novamente pediram ajuda de resgate, mais de 12 horas antes do barco afundar. Não atenderam ao pedido. A ajuda chegou tarde demais. Dois corpos foram encontrados pelas autoridades, o que significa que mais de 30 pessoas ainda estão desaparecidas no mar.

A política limitada ao controle de fronteiras da União Europeia está causando milhares de mortes no mar. É necessária uma mudança drástica nas políticas migratórias que coloquem no centro a vida, os direitos e a proteção das pessoas, em vez de tratar esta situação como um mero controlo de fronteiras e manter as pessoas que precisam de ajuda o mais longe possível do país.

Só este ano estima-se que tenham morrido 1.100 pessoas no mar tentando chegar à Europa, sendo que no mar Mediterrâneo se registam mais de 26.000 mortos desde 2015, números que não refletem todas as mortes, já que muitas desaparecem sem deixar rasto. Já existe milhões de africanos no fundo dos oceanos atlânticos que foram jogados  durante séculos de escravidão. 

Historiadores estimam que entre 15% e 25% dos africanos escravizados eram lançados ao mar, alguns mortos e outros até vivos se estivessem doentes. Se fala em quase 2 milhóes de corpos negros no fundo do mar. Em 2012 foi descoberto um verdadeiro cemitério de escravos debaixo d’água em uma ilha do Atlântico do Sul, chamada Santa Helena, quando construiam um aeroporto.

Os corpos pretos continuam ocupando espaço nos oceanos de maneira cruel, enquanto isso meio mundo se mobilizou e recursos públicos foram gastos na busca de cinco bilionários brancos que resolveram fazer um turismo no fundo do mar. 

No dia 6 de fevereiro de 2014, aconteceu a tragédia de Tarajal, onde 15 pessoas morreram na praia de Tarajal, em Ceuta na Espanha, afogadas, tentando chegar a nado à costa espanhola, enquanto os agentes da Guarda Civil disparavam contra eles balas de borracha e metralhadoras de fumaça.

E não só no mar a política migratória atinge os corpos negros. Exatamente um ano atrás acontecia um dos maiores massacres na Europa, que ficou conhecido como o Massacre de Melilha. Na manhã do dia 24 de junho de 2022, entre 1.500 e 2.000 migrantes e refugiados, a maioria do Sudão, Sudão do Sul e Chade que fugiam dos conflitos armados, tentaram cruzar a fronteira, pulando a cerca entre Marrocos e Melilla, Espanha. Cerca de 400 pessoas ficaram presas em um espaço pequeno e consequentemente confinados, os policiais partiram para cima e o confronto terminou com 37 mortos, 77 desaparecidos e 470 deportações ilegais. 

Um ano depois da tragédia nada aconteceu, a policía espanhola e marroquina não pagaram pelo crime cometido, o que deixa uma porta aberta para que uma tragédia como esta volte a acontecer, colocando em risco a vida de milhares de pessoas que buscam refúgio. 

Enquanto os países europeus tentam se livrar da culpa das tragédias, culpando as máfias de tráfico de pessoas,  a população africana continua morrendo e seus corpos pretos sendo acumulados nos cemitérios aquáticos do Mediterrâneo. 

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