A Constituição Federal Brasileira de 1988 ampliou os mecanismos de participação social nas tomadas de decisão. Miranda (2014) afirma que a ampliação dos mecanismos de participação social estimulados pela Constituição evidenciou um processo de redefinição do papel do Estado com base na universalização dos direitos de cidadania, descentralização e gestão democrática das políticas públicas. A luta dos outros movimentos sociais no processo da elaboração da Constituição de 1988 garantiu que a participação política nos processos de decisão fosse reconhecida como um direito. Hoje temos instrumentos de democracia direta, como o plebiscito, o referendo e a lei de iniciativa popular; de democracia participativa, como conselhos e conferências de políticas públicas; e de democracia representativa, com o direito ao voto para eleições majoritárias e proporcionais.
Desde a promulgação da constituição ocorreu uma multiplicação e diversificação dos conselhos, como os de políticas setoriais, definidos por leis federais para efetuação dos direitos de caráter universal – saúde, educação, cultura -, até os envolvidos com temas transversais referentes aos direitos dos indivíduos na sociedade – idosos, mulheres e igualdade racial. (Miranda, 2014). No entanto, tal disseminação quantitativa não pode ser interpretada como um indicativo de sucesso qualitativo.
O termo participação é empregado a partir de diferentes premissas e significados, desde a representação originária do voto, vinculada as premissas elitistas, até a perspectiva de diferentes formas de participação individuais e coletivas por meio de instituições participativas ou de movimentos sociais. (Miranda 2014).
Sobre participação, Dagnino (2005) afirma que não se pode mais admitir a sociedade civil como mera colaboradora da política, mas como a parte importante e determinante no fazer da política pública. O desafio, contudo, se constitui em estabelecer caminhos que possam consolidar claramente esta participação, mesmo diante de todos os percalços que as desigualdades sociais impõem, dentre elas as questões raciais, de gênero e classe. O projeto democrático participativo tem o seu contraponto no projeto neoliberal, com seus princípios de redução da presença do estado na promoção de diversos serviços e direitos. Um dos desafios impostos à sociedade é a compreensão e a avaliação destes dois projetos políticos: de cunho participativo e outro de implantação de um estado diminuído em sua participação na promoção dos direitos – seus princípios, suas prioridades e para quem de fato eles operam (DAGNINO, 2005). Nesse sentido, a autora argumenta que o enfrentamento destes dois projetos, o neoliberal e o democrático participativo, exige uma sociedade ativa, participante, cônscia dos subscritos nas linhas dos seus programas e planejamentos que formam as suas diretrizes e princípios. A autora menciona a confluência perversa e o fato de que o estado ausenta-se do seu papel, atribuindo à sociedade a responsabilidade de implementar ações que deveriam ser garantidas a todos, alertando para a importância de discussão, análise e compreensão deste fator, como essencial para uma participação mais ativa e, consequentemente, uma democracia mais inclusiva na qual a participação seja uma condição inquestionável no exercício da cidadania.
Além do enfrentamento entre projetos políticos distintos, o neoliberalismo tem provocado o que Martins (1997 apud Jesus 2014) chama de ―uma nova desigualdade social‖, que se caracteriza, basicamente, por criar uma sociedade dupla, como se fossem dois mundos, duas ―humanidades‖: de um lado, os integrados no circuito produtivo, de outro, uma sub-humanidade constituída pelos excluídos dos avanços do capitalismo emergente. É neste ponto que a dimensão de gênero e raça ganha relevo para além das desigualdades de classe.
Este paper foi elaborado num contexto cuja a participação da sociedade civil pensada de maneira interseccional é necessária para que os princípios democráticos e de cidadania sejam uma realidade. É importante fortalecer e transversalizar a dimensão de gênero e raça no aporte da participação social, no caso brasileiro, quando nos referimos a gênero e raça estamos falando de ampla maioria da sociedade brasileira. De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017, a população brasileira já era de aproximadamente 205,5 milhões, destes 54,9% são negros e pardos. As mulheres são mais da metade da população (51,5%). As mulheres negras são metade das brasileiras: 50,2 milhões (Pnad/IBGE, 2017).
Enfatizar a categoria de mulheres negras neste prisma é necessariamente pensar, como afirma Ribeiro (2016), a partir de uma análise interseccional, que dê conta de pensar as categorias de raça, classe e gênero de modo indissociável, pois atuam de formas combinadas e entrecruzadas. As mulheres negras no Brasil, compõem o grupo sobre o qual incidem diferentes eixos de opressão, portanto medidas voltadas somente a superar as desigualdades raciais ou exclusivamente a combater as desigualdades de gênero são insuficientes para a promoção da cidadania plena das mulheres negras (Crenshaw, 2004; apud Werneck, 2017).
Os abismos criados por mais de 300 anos de um sistema escravocrata no quadro social brasileiro se tornam visíveis a partir dos números, basta uma breve leitura das estatísticas dos indicadores sociais, para o entendimento dessa realidade. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 2017, 39,8% das mulheres negras brasileiras estavam em situação de pobreza. Nas favelas, 26% das casas são chefiadas por mulheres negras. De acordo com o Mapa da Violência (2015, ao longo de dez anos, o número de mulheres negras assassinadas sofreu um aumento de 54,2%. Enquanto isso, no mesmo período, o índice de homicídios de mulheres brancas decaiu 9,8%. De acordo com o Ministério da Justiça (2015) mulheres negras têm duas vezes mais chances de serem assassinadas se comparadas às mulheres brancas, possivelmente em decorrência dafalta de um olhar étnico-racial para políticas de enfrentamento a violência contra a mulher. A Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude (2007) pontua que a mulher presa no Brasil hoje é jovem, mãe solteira, afrodescendente e na maioria dos casos, condenada por envolvimento com tráfico de drogas ou entorpecentes.
Ainda no tangente a breve análise dos indicadores sociais para fim de contextualização, é pertinente pontuar que apesar de o rendimento das mulheres negras ter sido o que mais se valorizou entre 1995 e 2015 (80%), e o dos homens brancos ter sido o que menos cresceu (11%), a escala de remuneração manteve-se inalterada em toda a série histórica analisada pelo IBGE: homens brancos têm os melhores rendimentos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. A diferença da taxa de desocupação entre sexos também merece menção: em 2015, a feminina era de 11,6%, enquanto a dos homens atingiu 7,8%. No caso das mulheres negras, ela chegou a 13,3% (e 8,5% para homens negros).
Carneiro (2015) diz que em nossa sociedade a excelência e a competência são percebidas como atributos naturais do grupo racialmente dominante, o que naturaliza sua hegemonia em postos de mando e poder. Nunca ouvimos alguém se levantar, além da minoria de mulheres feministas ou militantes negros, quando o secretariado é composto em sua totalidade por homens brancos. É por isso, inclusive que não basta participar dos conselhos, mesmo que a pessoa tenha condições técnicas e até mesmo condições políticas para argumentar frente aos representantes governamentais.
No quadro social brasileiro, ainda temos uma baixa qualidade de vida da mulher negra, verificada em cada indicador econômico ou social produzido pelo Estado brasileiro, O racismo é assim, cruel. Ao instituir a superioridade de um grupo racial e a inferioridade de outro, gera diversas perversidades. (CARNEIRO, 2015). Coutinho (1999 aupd Jesus 2014) defende que a soberania do povo é a principal ferramenta para a consolidação da democracia que precisa ser fortalecida com ações da sociedade civil de forma mais enfática. Para dar sentido e motivação a uma crescente participação, é fundamental que as pessoas disponham das mínimas condições, ou seja, de autonomia econômica, social e política. Considerando a invisibilidade da justaposição de desigualdades vividas pelas mulheres negras reforça-se a necessidade de se perceber a participação social sob um prisma interseccional.A Combinação os critérios com recorte de gênero e de raça, e aqui acrescentamos também classe, é segundo Carneiro (2015) a única maneira de romper com a lógica excludente, que historicamente norteia as estruturas de poder do país, e, sobretudo, é requisito para o aprofundamento e a radicalização de uma perspectiva democrática no Brasil. É preciso reconhecer a magnitude das desigualdades raciais e da negação da mulher negra como sujeito social, que demandadora de políticas específicas, bem como de seu direito democrático de reivindicá-lo; são necessárias a formulação de propostas que permitam a circulação igualitária das imagens das mulheres recortadas pela raça. É preciso, ainda, que haja fortalecimento das organizações de mulheres negras.
As organizações de mulheres negras se expandiram nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1990, e conforme explanam Carvalho e Rocha (2016) tendo o feminismo negro como norteador de práticas políticas. Esse movimento tem orientado as lutas de mulheres negras, na construção tanto de suas identidades sociais como na sua constituição e fortalecimento enquanto sujeito político de direito. Essas organizações têm atuado em áreas como educação, saúde e cultura. Igualmente, atuam na elevação da autoestima das mulheres negras, na oferta de auxílio jurídico e no combate a todos os tipos de violência e discriminação racial.
O Feminismo Negro propôs um novo olhar sobre as experiências das mulheres, que ressaltasse as diferenças entre estas em contraponto a uma homogeneização que invisibilizava as condições específicas das mulheres quando se articulava a raça, etnia, classe, orientação sexual, e outras categorias (BAIRROS, 1995, p. 462). Principalmente por que, como já foi mencionado, no caso das mulheres negras a intersecção entre raça, gênero e classe é crucial para se compreender as demandas específicas dessas mulheres, nas áreas da saúde, educação, do trabalho, e deste modo superar as desigualdades sociais/raciais que as atingem e, que impossibilitam a ascensão social dessas mulheres na sociedade brasileira.
A luta dos movimentos de mulheres negras para conquistar reconhecimento público e adentrar em espaços de representação política em diferentes esferas de participação que vêm se abrindo na sociedade brasileira, conforme Carneiro (2015) revelou a insuficiência de quadros qualificados para as diferentes missões colocadas. Essas deficiências implicam em: centralização das tarefas mais complexas e em morosidade e falta de prontidão para responder às oportunidades de incidência política sobre as políticas públicas e para a viabilização de projetos e estratégias.
Os espaços e processos participativos devem se voltar para as necessidades concretas ditadas pelos objetivos estratégicos definidos pelas mulheres negras organizadas. Portanto, introduz-se aí uma questão essencial, para Carneiro (2015), na promoção do fortalecimento político e do processo de busca de autonomia das mulheres negras às instâncias de decisão e poder, bem como ao fortalecimento estadístico-institucional das organizações de mulheres negras, de cujo protagonismo depende o avanço dessa agenda e que é força motriz para pautar o tema da mulher negra tanto na esfera pública como na agenda governamental.
Nesse contexto, a autora considera que um eixo fundamental da estratégia de empoderamento das mulheres negras é o de busca e viabilização de pontes de sustentação das organizações de mulheres negras, o sujeito político no qual reside sobremaneira a possibilidade de pressão, proposição e monitoramento das formulações em relação à promulgação da igualdade de gênero e raça. Radicalizar democracia participativa fortalecendo os movimentos organizados da sociedade civil e ampliando a participação das mulheres negras no comando e decisão política de movimentos e partidos.
Motivar as mulheres e criar as condições para que estejam organizadas e possam refletir sobre o modo como as questões sociais e políticas ocorrem e interferem em suas vidas e na comunidade em que estão inserida pode contribuir para que as mesmas adotem uma nova postura diante da emergência da efetiva participação no monitoramento das políticas públicas e no acompanhamento dos recursos públicos, contudo, enquanto ainda persistirem operando no imaginário social, os estigmas e estereótipos que desvalorizam socialmente as mulheres negras e que carecem de estratégias para serem repelidos, o desafio para participação efetiva dessas mulheres nos espaços deliberativos e de tomadas de decisão, institucionais ou não, a necessidade de incidir sobre as construções culturais racistas que permanecem reproduzindo a imagem estereotipada das mulheres negras e sua desqualificação. Carneiro (2015) diz que é preciso confrontar o peso da hegemonia da branquitude nessa desqualificação das mulheres negras. Seriam esses alguns requisitos necessários para construir as condições para operar a desnaturalização do lugar da mulher negra na sociedade brasileira. Um lugar no qual a subalternidade aparece como uma dimensão ontológica do ser mulher negra.
NOTAS
¹ Paper elaborado como atividade avaliativa para a disciplina Participação e Controle Social na Gestão Pública, componente curricular do Programa de Gestão Pública e Cooperação Internacional da Universidade Federal da Paraíba.
² Mestranda do Programa de Gestão Pública e Cooperação Internacional da Universidade Federal da Paraíba.
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