Pensando e repensando a questão racial no Brasil

por Gabriel Marques

Existe um passado que o Brasil faz questão de esquecer, que não aparece nos livros e não é contado nas escolas. Por muito tempo o disfarce da ‘democracia racial’ escondeu a realidade dos morros, das disparidades no acesso à educação, ao trabalho e a tantos outros campos do dia-a-dia do país. O Brasil começa a mostrar a sua cara com a gradual desconstrução da fantasia do paraíso racial.

Existe uma enorme dificuldade em se admitir que o Brasil ainda mantêm fortes traços de uma sociedade racista; pois, afinal, o racismo é um mal cruel e inaceitável e ninguém quer ser identificado com tão perverso atributo. Entretanto, as mais diversas estatísticas demonstram claramente a falácia da idéia oficial de “democracia racial” no Brasil. Tais dados mostram uma realidade perversa, a de “um país, duas nações”, onde negros, aqui chamados pretos e pardos, além de literalmente mais de uma centena de outras variações de cor, aparecem em situação de exclusão social: os negros compõem as altas taxas de analfabetismo, dos que vivem em miséria, da grande massa dos que recebem o salário mínimo e que agora engordam as estatísticas dos desempregados. Apesar de tão desconcertante situação, poucos são ainda os que se aventuram a tratar abertamente a questão.

O Brasil é o país com a maior população negra fora da África; são cerca de 80 milhões de pessoas; mas estranhamente não estão nas universidades, não ocupam postos políticos de alto e baixo escalão, não são nem empresários nem grandes proprietários rurais, não figuram nas propagandas, não estão nos postos de comando das Forças Armadas – parecem mesmo não ser coisa alguma, com poucas exceções.

Na raiz destas disparidades estão os processos históricos de exploração econômica e humana, cujas estratégias de dominação incluíram dentre outras coisas, a supressão da história do povo oprimido, a queima de seus livros, a destruição de seus monumentos e o desaparecimento de seus heróis, além da obrigatoriedade do aprendizado da história do povo dominante. Ainda que tal processo possa ter sido implantado de forma inconsciente, este foi o modelo usado no processo de escravização dos povos africanos e das populações ameríndias. Seus heróis, seus valores, sua cultura, sua concepção de mundo foram finalmente pulverizados e transformados em matéria prima do folclore.

O “eurocentrísmo’, a visão de mundo a partir da perspectiva européia, fez com que a vasta maioria dos livros e enciclopédias não registrassem a história das grandes civilizações africanas, à exemplo do grande Império de Mali, de cuja influência havia se beneficiado metade do mundo civilizado do século quatorze. Seu ouro foi o combustível comercial do mundo, proveu metal para as primeiras moedas da Europa, desde os tempos de Roma. Timbuktu, a capital de Mali, foi descrita um século e meio mais tarde por Léo, o Afficanus, como a cidade do conhecimento e letras. Ele havia notado o grande mercado de livros manuscritos e chegou a relatar que mais lucro se fazia da venda de livros que de qualquer outra mercadoria. Apesar da imponência e grandeza de tal império, sua história continua esquecida nos livros escolares. O mesmo modelo de obnubilação da memória e aniquilação cultural se repetiu nas Américas, no caso das civilizações Maya e Asteca; um processo que teve seu inicio com a chegada de Colombo (1492) e ainda se arrasta até o presente dia.

Raramente se encontram nos atuais livros escolares e enciclopédias a simples menção do grande Império Asteca, cuja capital Tenoclitifián, tanto impressionou os primeiros espanhóis, tendo levado Bernal Diaz del Castillo a escrever que “aqueles que estiveram em Roma ou Constantinopla, dizem que, em termos de conforto, regularidade e população, nunca viram nada semelhante.” Quando o pintor alemão Albrecht Düer viu, em Bruxelas no ano de 1520, os trabalhos de arte Mexicanos enviados por Cortez ao Imperador Carlos V, ele escreveu em seu diário o: “Eu não posso me lembrar de ter isto nada em minha vida que me deleitasse tanto. Foram realmente prodigiosos trabalhos de arte e eu me maravilhei com o gênio sutil de homens em terras distantes. Eu não posso encontrar palavras para descrever o que tenho visto.”

Repetiu-se também no caso dos índios brasileiros, os quais foram igualmente dizimados, sem qualquer chance de defesa, seja pelas armas de fogo ou pelas doenças introduzidas em seu meio, ou ainda pelos processos de exploração econômica e humana, os quais acabaram por destruir costumes, leis, ritos, línguas, enfim, a obliterar sua própria história. No Brasil, os pouco mais de 250.000 sobreviventes, de uma população inicial estimada em cerca de 5 milhões de indígenas, encontram-se agora acantonadas em pequenas aldeias, objetos de estudos antropológicos, pequenos “bichinhos de estimação” a serem preservados em seu habitat e condição natural. A história passada e presente de sua verdadeira contribuição continua esquecida; sua riqueza e diversidade cultural desprezada. Nem sequer o fato de ainda existir mais de 180 diferentes idiomas e dialetos indígenas no Brasil, é motivo suficiente para realçar a beleza e riqueza de sua diversidade.

Quanto aos negros, não bastasse os três séculos e meio de escravidão, a Abolição apenas os colocou “no olho da rua’, sem nenhum amparo e à sorte do mercado. A Abolição significou uma liberdade duvidosa, já que não tendo os meios de subsistência, nem encontrando uma estrutura social de apoio à nova situação, forçou a muitos retornarem à casa de antigo senhor. Vale lembrar que somente entre os anos de 1888 e 1900, o estado de São Paulo receberia cerca de 300.000 imigrantes, os quais chegaram ao país com o apoio oficial e gozando de alguns benefícios não disponíveis aos negros recém libertos. Passados pouco mais de cem anos, a discriminação racial continua sentida e vivida diariamente. Ela está incorporada de forma invisível no dia-a-dia da nação e, por isso mesmo, ficou difícil de ser encontrada em um só lugar. Ela está em toda parte: está na imagem estereotipada do negro na literatura escolar, onde ele não se vê retratado como cidadão, onde não encontra seus heróis, onde também não tem história; está na tela da TV, onde ele invariavelmente aparece em segundo plano; destaque mesmo só nas páginas policiais. E que quadro mais patético e desolador continuar vendo milhares de crianças negras tendo como brinquedo, quase que exclusivamente, suas loiras bonecas de olhos azuis! O quadro é revelador da existência de um “ciclo de opressão” operando “invisivelmente” e já totalmente incorporado na cultura brasileira.

Pensar e repensar soluções também é preciso e a pergunta que se faz urgente é: como ajudar a transformar a atual realidade? Outro caminho não temos, senão o de rescrever e recontar a história, reconhecer e valorizar todos os heróis, trazer à luz todas as nossas raízes culturais e têlas em grande consideração! É preciso passar a limpo os currículos escolares e outros materiais didáticos, fontes que tem sido de uma imagem deturpada de negros e índios. Os ditos “brancos” precisam rever seu sentimento inerente, e por vezes até subconsciente, de superioridade racial. Mas se o racismo pode ser considerado uma doença, então os negros e índios estão igualmente infectados, pois carregam consigo um sentimento de inferioridade e de suspeita em relação aos brancos, feridas que precisam ser curadas. Em todos os casos é preciso não apenas uma política e legislação apropriadas, mas principalmente uma mudança dentro do coração.

Toqueville, historiador americano do século passado, declarou: “A lei pode destruir a servidão; mas apenas Deus poderia fazer desaparecer as suas marcas”. Outro eminente historiador chegou a descrever a religião como “uma faculdade da natureza humana”, num reconhecimento de sua influência sobre as expressões vitais da civilização e seu efeito sobre as leis e a moralidade e numa demonstração do verdadeiro papel das religiões.

Bahá’u’lláh, o fundador da Fé Bahá’í, religião que reúne mais de 5 milhões de adeptos em mais de 200 países e representando mais de 2. 100 diferentes grupos culturais e étnicos, traz à luz o conceito da Cidadania Mundial e prevê que os currículos escolares precisam enfatizar os princípios da Unidade da Humanidade e da Unídade na Diversidade. Enquanto um explica e expõe a unidade fundamental da espécie humana, já comprovada amplamente pela Antropologia, a Fisiologia e a Psicologia, ainda que infinitamente variada no que se refere aos aspectos secundários da vida; o segundo indica o quanto, em um mundo cada vez mais globalizado, é preciso reconhecer e valorizar os elementos culturais dos diversos povos da Terra, como uma fórmula única de afastar os antigos demônios das lutas étnicas e raciais, para o estabelecimento da paz no mundo e a sobrevivência da própria espécie. “É a diversidade de cor, tipo e forma que enriquece e adorna um jardim, tornando mais agradável o seu efeito’, escreveu ‘Abdu’l-Bahá, pensador e sábio persa.

Uma importante questão a mais: o reconhecimento da diversidade cultural intrínseca ao povo brasileiro, não pode ficar restrito ao simples multiculturalismo e etnocentrísmo, onde cada grupo acaba se fechando em si mesmo, criando guetos, perpetuando estígnias e privando o todo dos benefícios da interação cultural. É preciso ir além e despertar também a consciência de que vivemos em um só mundo e que pertencemos à mesma espécie.


 

* Gabriel Marques é autor do livro Da Senzala à Unidade Racial; membro da ALARA – Afro-Latin American Research Association; Mestrando em Desenvolvimento Social da América Latina.

 

 

Fonte: Bahai

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