Pode a subalterna julgar?

Mulheres negras nunca, em toda a história centenária do STF, ocuparam um de seus assentos vitalícios

STF (Supremo Tribunal Federal) é a mais alta corte do Poder Judiciário brasileiro, cuja presidência é a quarta na linha de sucessão à Presidência da República.

Na hipótese de impedimento do vice-presidente, do presidente da Câmara dos Deputados e do presidente do Senado, o Supremo assume o papel de presidir o país. Portanto, o STF é um dos ambientes de maior concentração de poder real no Estado democrático de Direito brasileiro.

Mulheres negras nunca, em toda a história centenária dessa corte, ocuparam um de seus assentos vitalícios. Então, levantamos uma questão: é possível fazer justiça para o povo brasileiro sem pessoas negras?

Além dos crivos constitucionais explícitos, como atender a uma faixa etária predeterminada, possuir notório saber jurídico, apresentar reputação ilibada e obter a aprovação da maioria absoluta do Senado após uma sabatina rigorosa, a composição racializada e gentrificada do STF enuncia explicitamente critérios de raça e gênero.

Mesmo quando não premeditados, esses critérios garantem a dominância de um imaginário conservador, tanto estético quanto ideológico, de quem pode ou não exercer a magistratura, cujas decisões darão a palavra final em temas de grande interesse e impacto social.

É que, mesmo após a redemocratização, marcada pela conflituosa, mas exitosa Assembleia Constituinte de 1987, pouca coisa mudou na “fotografia do poder” do Estado, que passou de autoritário para um modelo pretensamente social, regido por um diploma conhecido como Constituição Cidadã.

A falta de pessoas negras na corte deveria ser suficiente para gerar reflexão e incômodo profundo na sociedade e em nossos representantes, em todas as esferas de poder.

Afinal, quem é o povo brasileiro e quem são as cidadãs e os cidadãos que emprestam soberania a este Estado e o mantém de pé com seu trabalho e proficiência?

A composição heterogênea da população brasileira é formada em sua maioria por uma presença negra e feminina, conforme indicam dados estatísticos.

Os mitos da democracia racial e da miscigenação não dão conta do fato de que nosso povo tem a cor e o gênero que curiosamente se assemelham aos da pobreza, do desemprego, do feminicídio, das doenças crônicas e da falta de acesso a serviços essenciais no país.

Além do racismo, a ausência de pessoas negras nos tribunais superiores é um indicador da baixa qualidade da democracia e cidadania ofertadas para toda a população.

“Pode a subalterna julgar?”, questionamos, mesmo que tentem nos silenciar.

Nesse sentido, a Coalizão Negra por Direitos lançou há cerca de dois meses a campanha “Ministra Negra no STF”.

Ter uma ministra negra progressista no Supremo contribuirá para o aperfeiçoamento do sistema de Justiça brasileiro e interferirá positivamente em como a lei é interpretada, o é direito, aplicado e a justiça é feita.

Não há melhor momento para esse avanço do que em um governo igualmente progressista, eleito com destacada participação de mulheres negras.

Somente o racismo e os racistas conseguem justificar a reação violenta e a acusação infundada de ameaça à governabilidade em razão de uma campanha desta magnitude.

A iniciativa mobiliza e enaltece o maior eleitorado do presidente ao reivindicar maior participação democrática de mulheres negras e reparação histórica para o povo negro, mediante a ocupação de tribunais superiores, especialmente na cadeira da Ministra Rosa Weber, agora aposentada.

A campanha foi realizada em diversas frentes, passando por projeções em pontos turísticos de diversas cidades brasileiras, intervenções artísticas nas mídias sociais e em espaços públicos, produção de artigos e entrevistas.

Também foi criada a plataforma virtual Ministra Negra no STF, em colaboração com a organização Nossas, por onde foram coletadas milhares de assinaturas, encaminhadas ao presidente Lula em centenas de emails.

Foram feitos atos públicos na Câmara dos Deputados, na esplanada nos ministérios e no STF, com um encontro promovido em Brasília no dia 26 de setembro.

Os movimentos sociais negros se reuniram com organizações da sociedade civil, intelectuais e lideranças negras da política, da magistratura, do Executivo, além de personalidades de diversos segmentos e aliados que ocupam espaços de poder e tomada de decisão, para atestar que o condutor da premissa e da inteligência da campanha Ministra Negra no STF é o povo negro organizado.

A estratégia desse encontro foi inspirada no método coletivista dos movimentos sociais negros de fazer política e disputar a opinião pública: nos aquilombando.


*Maíra Santana Vida

Advogada e professora, é cofundadora do Aanju (Afrogabinete de Articulação Institucional e Jurídica) da Coalizão Negra por Direitos e pesquisadora de direitos humanos e relações raciais

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