Poéticas do gueto! – Por Mariana Santos de Assis

Fico me perguntando porque a surpresa da crítica literária e de tantos setores da academia diante da riqueza artística e literária das periferias do Brasil a fora. Sempre que alguma manifestação artístico-cultural de negros e pobres ganha espaço no mercado e nas mídias ocorre uma comoção, como se fosse algo absolutamente novo e inesperado. Parece que artistas negros pintando, cantando e escrevendo sua história, sua cultura, sua ciência ainda choca a nossa intelectualidade.

No caso da Literatura da Periferia ou Marginal, o choque é ainda maior. Aparentemente ainda é impensável ver negros fazendo poesia da melhor qualidade, interpretando a periferia com lirismo e intensidade, possíveis somente com um saber todo de experiências feito, como é o caso de nossos poetas/militantes. Falar da pobreza e do abandono não é expediente novo e até aprenderam a lidar com isso, depois do samba, do rap, do funk tentaram estabelecer os limites da sensibilidade da periferia nisso, numa militância constante, mais ainda, fornecendo para a classe média material para os momentos de conhecer o exótico e as aberrações que estõa da ponte pra lá. A cultura popular está na boca, no coração e no pé de todas as classes sociais, seja para salvar um pretinho pobre e sem futuro até poder contar com a caridade de seus algozes, seja para consumir nossa cultura como quem vai ao fastfood e sai orgulhoso com a surpresa sangrenta ou sexual da vez. Todos querem sua Nega Fulô em casa!

Mas existem mais mistérios entre a poesia e a militância do que supõe nossa vã intelectualidade. Não temos apenas ativistas e interesses sociais e políticos, tempos também espíritos sensíveis à questões clássicas da poesia, da humanidade, de quem sente e vive intensamente os sentimentos que nos foram privados. No processo de nos fazer acreditar na inferioridade criada para nos oprimir, nas tentativas constantes de nos transformar em selvagens sem alma, sem cultura, sem história e sem raízes, também tentaram nos privaram de amar, desejar, sonhar e sentir.

Tentaram e ainda tentam nos privar do conhecimento de nossos ancestrais e do conhecimento construído na diáspora, na cumplicidade com nossos irmãos de cárcere espalhados pelo novo mundo que ainda tentamos conquistar e fazer parte. Brasileiros, norteamericanos, haitianos, indígenas, enfim todos que contribuíram para o conhecimento híbrido e rico que nos manteve e mantém vivos e humanos. Importante frisar que esse hibridismo não é o romântico trânsito livre e fluido entre fronteiras porosas pintado pelos pós-modernos apaixonados e sonhadores, trata-se, antes de um processo de luta por afirmação e sobrevivência de nossa cultura, de nossa humanidade, há quem diga que é o raciocínio que nos faz diferente dos animais, eu digo que é a arte que nos torna seres únicos, a capacidade de produzir beleza no caos, fazer uma flor brotar em um lixão, tirar um sorriso do rosto triste de uma criança faminta, sem sonhos ou futuro, isso é o que nos torna humanos, a racionalidade nos levou a explorar, escravizar e exterminar pessoas, culturas, florestas, histórias e saberes.

Ao desrespeitarem nossa fé ora como feitçaria do mal. Ao ler nossa poesia, ouvir nossa música, ver nossos quadros, esculturas e grafites como algo menor ou com olhar condescenndente de quem acha bonitinho a gracinha de uma criança estão tentando retomar sua condição de senhores e nos colocar, novamente como escravizados sujeitos às vontades e dizeres dos senhores.

Felizmente hoje o objeto cansou de ser olhado, de ser dito, de ser calado, não aceitaremos mais as histórias únicas e mentirosas que nos contaram, estamos escrevendo a nossa, cheia de rimas, com a musicalidade aconchegante e suave dos cantos africanos, com a batida contagiante dos tambores, a cadência do samba, a força do rap, a beleza melancólica do blues, a sacralidade do reggae, a ginga da capoeira. Estamos contando nossa história com os intelectuais que nos esconderam, dentro das universidades construídas com o sangue de nossos ancestrais, ocupando os espaços de saberes e luta que nos foram negados, dando prosseguimento à luta que nos fizeram acreditar que nunca existiu.

Estamos escrevendo uma nova realidade para o povo preto. É absolutamente contagiante ver o orgulho nos olhos dos nossos irmãos se sentindo cada vez mais bonitos, admirando sua quebrada sem perder a consciência de que a luta pela dignidade e pela liberdade é todo dia. Se alguém ainda tem muita dificuldade para entender essa dinâmica, para acompanhar a diversidade criada pela criatividade de nosso povo, não se preocupem, para isso estamos nas suas universidades, para tentar explicar pra ver se vocês entendem e conseguem deixar de separar a luta, a politica, a militância da sensibilidade, da beleza, do lirismo.

Realmente o mundo é bem mais diferente da ponte pra cá do que eles podem imaginar!

Mariana Santos de Assis: formada em letras e mestranda em linguística aplicada na Unicamp, militante no Núcleo de Consciência Negra e na Frente Pró-Cotas da Unicamp.

 

Fonte: Enviado por Cidinha da Silva

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