Quilombos não se inventam; eles existem historicamente

Quilombos não se inventam; eles existem historicamente: apontamentos sobre a história e a ancestralidade do Horto Florestal do Rio de Janeiro 

Localidades: Ruína da Senzala Caxinguelê 

Temas: Resistência 

Suportes da Memória: Monumentos Séc. XVI 

Por Laura Olivieri Carneiro de Souza, Historiadora, mestre em História social da cultura, doutoranda em Serviço social (PUC-Rio) e coordenadora do Museu do Horto 

Em resposta à matéria publicada essa semana pela Revista Veja (“Um ultraje, um escândalo” na edição 2203, ano 44, no 6, de 9 de fevereiro de 2011), como historiadora e uma das coordenadoras do Museu do Horto, me sinto no dever cívico de socializar as informações que acumulo em dez anos de pesquisas e estudos sobre a história do Horto Florestal, embora outros profissionais já tenham escrito boas defesas da comunidade e sua história depois que a mídia passou a atacar a região, estigmatizando seus moradores como “invasores” e outros perversos atributos na tentativa de desqualificá-los e mesmo criminalizá-los. 

Procurarei me deter num ponto específico da citada matéria, para o que, transcrevo o trecho ao qual respondo com o presente artigo: “Cogitou-se até transformá-la [“a área invadida”, segundo a revista] em quilombo, sob a alegação de que quem pleiteava a terra eram descendentes de escravos, mas a idéia não vingou por completa falta de evidências”. 

Em primeiro lugar, importa reafirmar que a área da União em conflito entre moradores do Horto Florestal (pelo direito de moradia digna e histórica) e Instituto Jardim Botânico (pela intenção de expandir seu arboreto e atividades botânicas) não se configura como invasão porque as residências em questão existem e ali permanecem há mais de dois séculos, sendo algumas anteriores ao próprio parque. 

Construção de casas no Caxinguelê, 1950´s Na região, que pertencia à Freguesia da Gávea, ergueu-se, em 1575, o Engenho D´el Rey que depois passou a se chamar Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, cujos proprietários de terra possuíam escravos que residiam na localidade, em senzalas. A primeira população do Horto era descendente de africanos que ali trabalharam e firmaram suas raízes culturais e simbólicas. Os descendentes de africanos moravam em sua maioria no Grotão, no Solar da Imperatriz e cercanias, e no Morro das Margaridas, todas áreas do Horto. Outra parte da população do Horto descende diretamente de trabalhadores das Fábricas de tecido ali instaladas desde os anos 1890 (Fábrica Carioca de Tecidos, em 1920 comprada pela América Fabril) e também de funcionários do Jardim Botânico, cuja maioria teve permissão para construir suas moradias em terreno da União Federal e arcou com os custos e o trabalho da construção. Essa parcela da população do Horto teve o lugar de suas moradias determinado pela então administração do parque, nos anos 1950: a região do Caxinguelê, atualmente pivô do conflito fundiário com o IJB. 

Até o final dos anos 1980 tanto o Jardim Botânico quanto o Horto Florestal eram administrado pelo IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura. Inclusive por isso o Horto era sempre visitado por autoridades do governo federal e ainda o é. Juscelino Kubitschek fundou uma escola com o nome de sua mãe, a Escola Municipal Julia Kubitschek que ainda existe e atende crianças da educação infantil do Município, uma das poucas da Zona Sul, chegando a atender crianças da Rocinha e do Vidigal. Essa escola fica na região histórica do Caxinguelê, e foi fundada em 1961. Há dois anos atrás teve seu pátio reduzido à metade pelo Instituto Jardim Botânico. 

A área citada pela Veja como “invasora” é, na verdade o Caxinguelê, cujos moradores e/ou estudantes da Escola Julia (como é conhecida no Horto) são vítimas do crescimento do parque e hoje vivem reféns dos novos portões que o IJB construiu bem mais a frente dos seus antigos limites. Não duvidamos que o IJB precise expandir o seu arboreto e suas atividades botânicas e nem muito menos desmerecemos a importância histórica e botânica do parque que orgulha cariocas e encanta turistas há tantos anos. Apenas não podemos admitir que se esteja tentando disseminar a opinião equivocada historicamente de que os moradores do Horto são invasores. Eles não são! 

Isso é sabido e foi comprovado em ampla pesquisa sócio-econômica e jurídica que a SPU (Secretaria de Patrimônio da União) -órgão de direito e de fato responsável pela gestão das terras públicas em que se encontram tanto Horto quanto o Instituto Jardim Botânico- em parceria com a UFRJ (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) realizaram na localidade. Portanto, ao contrário do que afirmam a Revista Veja e algumas edições do jornal O Globo, a SPU tem total legitimidade para gerir o caso, inclusive se relacionando com a AGU (Advocacia Geral da União) e outras instâncias do Ministério do Planejamento e do Governo Federal, para resolver conflitos e interditar vereditos de juízes que historicamente optam pela “reintegração de posse”, retirando pobres da região e soltando-os no mundo, sempre na periferia. Afinal pobre tem direito de morar na Zona sul do Rio de Janeiro? Sim, e o povo do Horto sempre morou ali. O Horto será um exemplo afirmativo da possibilidade democrática, num momento da história do Brasil em que governos sucessivos de esquerda conseguiram levar a economia e a política externa a contento e ainda concretizaram beneficios na área social, por meui das chamadas políticas afirmativas, que visam diminuir as distâncias históricas entre ricos e pobres, brancos e negros alargando os direitos de nossos cidadãos. Ah sim, agora, com medidas inclusivas federais, negros têm liberdade e pobres têm direito à cidadania e dignidade, junto com outros grupos historicamente oprimidos. A atual gestão da SPU está cumprindo a sua missão constitucional. No Horto haverá justiça política, no sentido mais democrático. 

Outras verdades sobre o Horto são igualmente fundamentadas pelo documentário Horto lugar de memórias e pelo trabalho de memória social que o Museu do Horto (www.museudohorto.org.br) vem realizando. Sobre esse ponto, o qual deixamos de lado por ora a fim de nos concentrarmos na questão quilombola, fica a pergunta: Por que a imprensa nunca vem conversar com o Museu do Horto e com a AMAHOR quando escreve matérias sobre o Horto e sua histórica população. Não seria mais lógica essa aproximação do que se pautar unicamente pelas informações repassadas pela AMAJB, cuja gestão atual declara em alto e bom som a sua intenção de remover toda a população pobre do pulmão da Zona Sul carioca, provavelmete para liberar o nobre espaço para o avanço do capital imobiliário? 

Casa Grande e Senzala 

Em segundo lugar, cabe a esse texto esclarecer que Quilombos não se inventam, mas são historicamente construídos e identificados segundo uma realidade histórica específica, a qual remonta ao tempo da escravidão brasileira. Algumas populações quilombolas mantiveram suas tradições e suas experiências compartilhadas de forma tão viva e resistente que ainda hoje vivem de maneira semelhante ou idêntica à época da escravidão, preservando costumes e valores ancestrais. Por isso são reconhecidas pelo Governo Federal como patrimônio brasileiro, merecidamente! 

Por falta de provas (mas não de evidências, como afirma equivocadamente a citada matéria) não podemos afirmar que no Horto tenha havido um quilombo strito sensu , tal qual aclamado pela historiografia como quilombo tradicional (Chalhoub, 1990) ou quilombo-rompimento (Silva, 2003). No entanto, há evidências cabais de que o Horto tenha feito parte das rotas de fuga quilombolas da cidade do Rio de Janeiro à época dos movimentos abolicionistas, como claramente demonstrou o renomado historiador Eduardo Silva (2003). 

Além disso, há evidências concretas e imaginárias (que dizem respeito ao imaginário coletivo de sua população) de que existiram duas senzalas na região do Horto, uma das quais preservada pelos moradores do Morro das Margaridas e atualmente incorporada ao acervo do Museu do Horto, com o reconhecimento e apoio do IBRAM – Instituto Brasileiro de Museus. A outra, no porão do Solar da Imperatriz, Casa Grande do Engenho D´El Rey, depois chamado Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, continha evidências da escravidão (correntes e ferros em que os negros eram aprisionados) até pouco tempo atrás, quando uma obra do IJB para ali construir sua cafeteria descarecterizou esse rico acervo. Infelizmente hoje não podemos mais (re)conhecer ali uma senzala, a não ser por meio da memória dos habitantes mais antigos da região que contam histórias das correntes e dos gemidos que ali tinham lugar. 

A senzala do Morro das Margaridas, hoje em ruína mas presente no sítio histórico do Horto, abrigou os primeiros escravos que chegaram aos engenho D´el Rey e Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, a partir de 1575. Representa um tipo de construção característico das primeiras casas de escravos: um barracão pobre e rústico integrado a um terreiro, onde se celebravam os ritos e se cultuavam as tradições africanas e (depois) afrobrasileiras. Mais ou menos nos mesmos parâmetros arquitetônicos e culturais se construíam os quilombos. Quais as diferenças, então, entre uma senzala e um quilombo dessa época, denominado por Eduardo Silva de “quilombo-rompimento”? 

Grosso modo, podemos dizer que as principais diferenças se davam pelo lugar em que os quilombos se erguiam inicialmente, em matas isoladas, e pelo espírito de resistência e luta que mantinham, pois os quilombolas dessa época precisavam radicalizar suas opções: fugiam do cativeiro e se afastavam fisica e moralmente da sociedade escravista.”No modelo tradicional de resistência à escravidão, o quilombo-rompimento, a tendência dominante era a política do esconderijo e do segredo de guerra. Por isso esforçavam-se os quilombolas exatamente para proteger seu dia-a-dia, sua organização interna e suas lideranças de todo tipo de inimigo, curioso ou forasteiro, inclusive, depois, os historiadores” (SILVA, 2003, p. 11). 

Fundavam, assim, um território africano nas margens e a despeito do poder senhorial, um território repleto de símbolos e práticas ancestrais africanas, cuja territorialidade marcava também algumas senzalas. Havia algum intercâmbio entre o cativeiro e os quilombos, cujos heróis da resistência circulavam destemidos com a força do seu axé, manifestado na sua arte marcial –a Capoeira- e na sua religião –o Candomblé. 

Ruína de senzala no Horto No século XIX o movimento abolicionista crescera de tal forma e abrangera tanta gente da sociedade que os quilombos já não precisavam se esconder em demasia. Nem assim desejavam pois fazia parte da estratégia abolicionista evidenciar o movimento de resistência. Eram novos tempos e um novo modelo de quilombo se configurava: o “quilombo abolicionista” (SILVA, 2003, p. 11). 

Foi nesse contexto abolicionista que o Horto, nomeadamente o Morro das Margaridas, fez parte da rota quilombola de fuga e resistência. Ali no coração do Horto, em cima do morro com nome de flor (característica bem abolicionista), de cujo topo se tem uma visão panorâmica da cidade e de suas matas, os quilombolas passavam e se hospedavam rumo ao Quilombo das Camélias (na região hoje conhecida como Alto Leblon) grande reduto da resistência negra oitocentista, QG e símbolo do movimento abolicionista, então com muitos adeptos, circulação e divulgação. 

Quanto à senzala do Solar da Imperatriz, sabe-se que após sucessivos proprietários, já no final do sec. XVIII, tinha o referido Engenho cerca de 59 chácaras no seu interior arrendadas a terceiros. Provavelmente deriva daí o casario erguido no entorno do Solar. 

Esta senzala tinha características de uma Casa senhorial típica do século XIX, quando as construções imperiais das Fazendas de Café (sobretudo no Vale do Paraíba) incluíam a senzala no interior da Casa Grande, normalmente em seu porão. Sabe-se, ainda que o Solar passou por obras grandes e estruturais em 1875, quando o governo Imperial desapropriou a Fezenda dos Macacos (o último nome que delimitava a área do Solar da Imperatriz em alusão ao Rio dos Macacos) para ali instalar o Asilo Agrícola, sob a gestão do Jardim Botânico. 

Solar da Imperatriz antes da restauração Portanto, nos perguntamos: será que a obra sofrida no Solar em 1875 fez do porão da casa o reduto dos escravos (uma senzala) estando seus proprietários antenados ao novo modelo arquitetônico de Casa Grande com senzala embutida no subsolo? Ou será que a senzala dos Engenhos que tiveram lugar na região do Horto sempre foi ali, se configurando numa espécie de embrião arquitetônico vanguardista das construções do porvir e a ruína do Morro das Margaridas ao invés de ter sido uma senzala poderia ter sido, isto sim, um quilombo, identificando ancestralmente a história do Horto com a resistência da cultura negra na cidade? 
Sejam quais forem as respostas que encontraremos adiante, temos como hipóteses: 1) senzala ou quilombo, a construção do Morro das margaridas abrigava a resistência escrava no Horto porque continha as características arquitetônicas e culturais de terreirão, o que fazia do lugar um reduto africano na cidade; 2) a população pobre do Horto tem a resistência cravada no coração de sua identidade, historicamente e ancestralmente. 

Por fim, temos uma certeza: o Museu do Horto tem a missão de reafirmar essa identidade negra e guerreira da região e está trabalhando junto com os moradores a história e a cultura da resistência afrobrasileira em ações que envolvem a capoeira, a cultura ervateira ancestral, as expressões religiosas, o samba, a feijoada… E doa a quem doer, incomode a quem incomodar, não vamos dar o braço a torcer e nos manteremos firmes na luta, como sempre esteve a combativa população do Horto em séculos de resistência e afirmação cultural. 

Referências 

BIZZO, Maria Nilda et al. Cacos de memórias. Experiências e desejos na (re)construção do lugar: O Horto Florestal do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Arquimedes, 2005. 

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte . São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 

Jardim Botânico do Rio de Janeiro, do seu início aos nossos dias. Rio de Janeiro, Rodriguésia, 1980; Histórico do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1983; “O Solar da Imperatriz” in: Boletim do Museu Histórico. nº3. 

SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura . São Paulo: Cia das Letras, 2003. 

Fonte: Afropiauense

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