Racismo na PSP: “A minha cunhada é de cor, não ia dizer essas coisas”

Terceira sessão do julgamento dos 17 polícias da PSP de Alfragide, acusados de tortura e racismo. Ministério Público (MP) apagado não confronta arguidos com as provas da investigação. Estará a recuar?

Por Valentina Marcelino, do DN

17 agentes da PSP estão a ser julgados no tribunal de Sintra | CARLOS COSTA / GLOBAL IMAGENS

Um agente que foi agredido e não agrediu; outro que achou por bem dizer que tinha uma cunhada negra; outro sentiu-se num erro de “casting”; outro que veio da Guarda e não sabia como reagir; e ainda outro que nem sabia que a PJ o tinha como suspeito. Praticamente sem serem confrontados pelo Ministério Público (MP), que os acusa de terem agredido de forma cruel e racista seis jovens da Cova da Moura, os cinco agentes da PSP ouvidos esta terça-feira no tribunal de Sintra contaram a sua versão dos acontecimentos do dia cinco de fevereiro de 2015. A mesma versão que já foi contrariada pela Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) e pela investigação da PJ, que sustentou a acusação do MP.

Estes cinco agentes fazem parte do grupo dos 17 polícias, entre os quais um chefe (Luís Anunciação) que comandava na altura a esquadra, que respondem por denúncia caluniosa, injúria, ofensa à integridade física e falsidade de testemunho. Estes polícias, que à data dos factos prestavam serviço na Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial (EIFP) da Amadora, estão ainda acusados de outros tratamentos cruéis e degradantes ou desumanos, de sequestro agravado e de falsificação de documento. A acusação do MP sustenta que os elementos da PSP espancaram, ofenderam a integridade física e trataram de forma vexatória, humilhante e degradante as seis vítimas, além de incitarem à discriminação, ao ódio e à violência por causa da raça.

O primeiro agente a falar foi André Quesado, que fazia parte da Equipa de Intervenção Rápida (EIR) que deteve Bruno Lopes na Cova da Moura, incidente que desencadearia os restantes acontecimentos. Quesado confirmou a versão dos outros sete agentes já ouvidos, segundo a qual a carrinha onde se deslocavam foi alvo de uma pedrada, que foi Bruno Lopes quem a atirou e que foi detido por isso. O agente alega que foi agredido como um pontapé na mão pelo detido, que lhe causou “muitas dores” e, quando questionado pela juíza se não teria havido alguma força “excessiva” contra o jovem, garantiu que não. “Só utilizámos a força estritamente necessária”, asseverou. “Caso contrário, o Bruno não teria saído só com lesões do nariz não era?”, indagou a juíza presidente do coletivo, Ester Pacheco. “Possivelmente não. Dou como exemplo um treino em que participei duma situação de algemagem com resistência, em que fui internado com traumatismo craniano. E era em ambiente controlado”, revelou.

Arlindo Silva, que trabalhava na secretaria da esquadra, de onde garante ter saído apenas por breves momentos, negou igualmente os factos que lhe estão imputados na acusação e que estão relacionados com a detenção de Rui Moniz, um jovem com uma deficiência no braço. O MP alega que Arlindo perguntou a Moniz porque usava a tala no braço e que este lhe disse que tinha tido um AVC. “Em tom de gozo e com manifesta intenção de o humilhar e amedrontar, dirigiu-se ao ofendido da seguinte forma: então não morreste? Agora vai-te dar um que vais morrer, ainda por cima és pretoguês, preto, filho da puta e lhe desferia vários pontapés no peito e puxões de cabelo”, está escrito na acusação.

Confrontado pelo tribunal, o agente negou com veemência. ” A minha cunhada até é de cor. Não ia dizer uma coisa dessas”, sublinhou, refutando que tenha tido intervenção ou interagido com Rui Moniz. “Então como caiu nisto?”, perguntou Ester Pacheco, tendo em conta o que lhe está imputado na acusação. “Também gostava eu de saber. Se calhar é porque estava há 22 anos na Amadora e também fui algumas vezes à Cova da Moura”, salientou, acrescentando ainda que era o “único com óculos” na sua fila de reconhecimentos feito pela PJ.

O agente Hugo Gaspar confessou que se sentiu num “erro de casting” quando foi chamado à PJ. Contou que só chegou à esquadra nesse dia às 22.30 (as detenções terão tido lugar centre as 14.30 e as 15 horas) e que apenas fez escolta ao carro celular que transportou os seis jovens detidos para as celas do Comando Metropolitano de Lisboa, onde pernoitaram. Confirmou que entrou na EIFP para ir buscar e algemar um dos detidos, mas nega que tenha proferido as expressões que lhe estão imputadas: “Pretos do caralho vão para a vossa terra! Não sabem como odeio da vossa raça. Falta um Salazar neste país. Quero exterminar-vos todos desta terra! É preciso uma legislação para fazer a vossa deportação. Se eu mandasse vocês seriam todos esterilizados!”. “Não me revejo nessa linha de pensamento!, assegurou ao tribunal.

Marco Monteiro contou que estava, nesse dia cinco de fevereiro, junto ao muro que cerca a esquadra, com outros dois agentes, quando viu entre 15 a 20 pessoas a vir em sua direção a atirar pedras à esquadra. “Alguns disseram que iam libertar o Bruno e começaram a empurrar-nos e a dar socos e pontapés”, recordou, tendo “alguns conseguido entrar” e outros fugido quando ouviram um tiro de shot-gun dado por outro colega. Questionado sobre o que tinha feito, se tinha perseguido alguém, confessou que não. “Vim da Guarda, estava há quatro meses na Amadora, não sabia o que fazer, nunca pensei ver uma coisa daquelas”, afirmou.

Este agente deixou um dos membros do coletivo de juízes, Paulo Cunha, surpreendido quando confirmou que, passados cerca de 10 minutos da alegada tentativa de invasão (que é infirmada na acusação e pelo primeiro relatório da IGAI) tinha ido levar Quesado ao hospital, juntamente com outros três colegas. “Então tinha havido uma tentativa de invasão da esquadra e vão embora quatro elementos antes de chegarem sequer os reforços? Não acha estranho?”, questionou o magistrado. “Recebi ordens”, respondeu.

João Pires foi o quinto e último arguido a prestar testemunho. Corroborou as versões anteriores e manifestou a sua surpresa por estar acusado, uma vez que chegou à esquadra já estava o INEM a prestar assistência aos jovens, na altura detidos e apenas os acompanhou na ambulância. Quando foi à PJ para a ser reconhecido pelas vítimas foi ao engano: “Pensava que ia como voluntário, mas saí como arguido. Nem me apercebi que estava a assinar a constituição como arguido”, frisou. “Mas pensou o quê? Que era figurante? Ninguém lhe disse nada?”, questionou surpreendida a juíza.

O que conclui o MP

De toda a narrativa produzida pelos arguidos, registada principalmente nos relatórios dos agentes André Silva (que conduzia a carrinha da EIR na Cova da Moura) e pelo chefe Luís Anunciação, bem como nas declarações que fizeram à IGAI, o MP concluiu que “das diligencias de recolha de prova que foram realizadas, a saber, prova testemunhal, exame médico às lesões que ofendidos e denunciantes apresentavam, a inspeção feita ao local pela IGAI e o relatório do exame pericial do exame pericial dos invólucros dos projéteis usados e do confronto desta prova com as versões apresentadas permitem concluir, de forma inequívoca, que os factos descritos pelos agentes André Silva e Luís Anunciação não se haviam verificado, sendo falsas as narrativas ali vertidas”.

Para o MP estas versões “só encontram justificação para tentar iludir o tribunal de forma a fazer crer o MP que foram os denunciados que justificaram a atuação policial, nos termos em que aquela foi exercida e a legalidade da mesma, tentando assim evitar as consequências e responsabilidades que para eles advinham da sua atuação que, em face da prova produzida e recolhida, se conclui por ser manifestamente injustificada e violadora da lei”. Quanto à “à suposta invasão da esquadra, os relatos de João Nunes e André Quesado dizem que seriam entre 10/15, outros 20/25 André Silva e Luís Anunciação). Mas outros agentes interrogados pelo MP, referem 4/5, 5/7 ou menos de 10 e que o efetivo da EIFP não necessitou sequer de apoio da 64ª esquadra”.

Segundo o relatório da IGAI, citado no despacho de acusação, “as versões que incluem o arremesso de pedras ao edifício da esquadra não são sustentáveis. A distancia do muro do jardim até à parede do edifício não é maior que cinco metros, as pedras teriam de forçosamente partir vidros das janelas, que são logo ali, ou deixar marcas de embates nas paredes. E não havia nem vidros partidos nem buracos nas paredes quando a inspeção que se deslocou ao local” A IGAI exclui ainda a responsabilidade de Bruno Lopes nas lesões de André Quesado, “desconhecendo-se as circunstâncias em que estas ocorreram”.

Lúcia Gomes, uma das advogadas dos jovens, não deixou de manifestar ao DN a sua estranheza por o procurador do julgamento, Manuel das Dores (conhecido pelo casos Moderna, operação Furacão e co-autor da acusação dos vistos Gold) não ter confrontado os arguidos com as provas da investigação. “A acusação é do MP, mas quem tem colocado mais questões são os juízes e nós”, constatou, facto confirmado pelo DN. Já Semedo Fernandes, que também integra a defesa dos jovens, aparentava estar mais tranquilo: “Faz parte da estratégia. Ele sabe as provas que tem e sabe que os arguidos vão sempre negar, como o têm feito”. Fica no ar a questão se o MP ainda se sente seguro com a acusação inédita aos 17 polícias ou se vai recuar nas alegações finais, nomeadamente em relação a alguns dos agentes.

A próxima sessão será dia 19 de junho e a juíza disse pretender terminar as audiências com os arguidos para iniciar, dia 26, as sessões com os ofendidos.

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