“Reparação é reconhecer o que a História nos negou. E não é algo que a humanidade desconheça”, diz Epsy Campbell

Artigo produzido por Redação de Geledés

Com exclusividade, a presidenta do Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU fala a Geledés sobre a relevância de se fazer reparações às comunidades negras e a importância de uma educação antirracista

Epsy Campbell Barr, presidenta do Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU, deu uma parada em sua tribulada agenda durante o 3º Fórum Global contra o Racismo e a Discriminação da Unesco, na quinta-feira passada, 30, para conceder esta entrevista exclusiva aGeledés.

A ativista feminista negra costarriquenha, economista e uma das fundadoras do Partido Ação Cidadã se tornou, em 2018, a primeira mulher e afrodescendente a assumir a vice-presidência de seu país. Foi também eleita duas vezes deputada na Costa Rica. 

Fundadora do Centro para Mulheres Afrodescendentes e do Instituto Afrodescendente de Estudo, Pesquisa e Desenvolvimento, bem como do Parlamento Negro das Américas, Epsy está sempre atenta às lutas em vários países contra o racismo e as diferentes formas de discriminação. 

Nesta entrevista, ela avalia como se pode avançar na área de Educação e propõe um debate profundo sobre reparação, um tema que está cada vez mais na pauta das organizações antirracistas. É preciso ser feita “a identificação de tudo o que impacta nos sistemas de saúde, educação e política para fazer a reparação do pós-traumático em relação à escravidão. Mas, para isso, é preciso capacitar os responsáveis por essas ações”, diz ela.

Epsy também classifica o resultado dos 20 anos de cotas raciais no Brasilcomo “extraordinário” e o menciona como um exemplo a ser seguido por outras nações. Veja a entrevista da presidenta abaixo.

Geledés – Como avalia o 3º Fórum Global contra o Racismo e a Discriminação da Unesco?

Epsy Campbell – Esta é uma atividade que firma a discussão de um tema crucial para os afrodescendentes no mundo, principalmente em relação ao direito das mulheres negras. Embora seja uma área (da Educação) que não encontramos a robusta e necessária representatividade da sociedade civil com pessoas que têm experiências para compartilhar. É preciso colocar na mesa de discussões as experiências contra o racismo e a discriminação que vão desde os tomadores de decisão até os profissionais da Educação. No Brasil, em particular, este é um tema em que há uma abertura para um debate público mais justo. 

Geledés – Como avançar na Educação antirracista e antidiscriminatória?  

Epsy – A escola e o sistema educativo formal, e considero isso um desafio, teriam que eliminar a mentira, porque temos uma História que mente e reafirma a exclusão e a discriminação ao colocarem os negros e negras em uma condição de subordinação sistêmica. Portanto, essa perspectiva tão nefasta do sistema educativo deveria ser abolida, porque em vez de dar aos afrodescendentes do Tráfico Transatlântico uma fortaleza e um lugar digno por serem descendentes do maior genocídio vivido pela humanidade, o sistema acaba reforçando uma inferioridade negra e estereótipos dos afrodescendentes. Reforça ainda a ideia de Europa como o ponto de chegada e nascimento da cultura universal. 

Neste sentido, há ainda muito o que se fazer no sistema educativo. Não é que faltem textos ou pesquisas, que por sinal estão em processo contínuo de investigação. E não faltam perspectivas, mas se mantém o racismo sistêmico de transmissão cultural com uma série de elementos que constroem os imaginários, colocando os afrodescendentes e indígenas em uma situação de clara desvantagens social, cultural e econômica. A Educação precisa ter outro papel. De que adianta termos 10 tomos sobre a História da África (se referindo a lançamento do Volume X da Coleção História Geral da África durante evento) se eles não fazem parte de textos obrigatórios (nas escolas)? O que ganhamos em entender que o colonialismo estruturou uma sociedade de exclusão, se seguimos comemorando uma ideia colonial romântica, falsa, mentirosa, que dá vantagens a alguns e coloca outros em evidente desvantagem? Há um nó nisso. No Brasil, existe um reconhecimento do racismo sistêmico, mas é preciso desatar esse nó para dar dignidade à essa população, tratando-a como seres humanos, seguindo a simples promessa da Declaração de Direitos Universais, que inclusive está completando 75 anos. A Educaçãoteria que fazer isso. 

“O Brasil deve se sentir muito orgulhoso das cotas assim como as comunidades negras que trabalharam para isso durante longo processo até alcançá-las”

Geledés – O Brasil completa 20 anos da implantação da política de cotasnas universidades. Como enxerga essa transformação no País?

Epsy -Estou impressionada que o Brasil esteja sendo uma escola internacional para o mundo sobre como se deve tratar os universitários, abrindo as portas para os direitos que eles têm. Impressionada não apenas pelo resultado de se romper essa estrutura onde os estudantes negros teriam possibilidades mínimas, mas também pelo fato de romper com esse debate mentiroso e racista que afirmava que as cotas iriam deteriorar a Educação e seria necessário buscar outros mecanismos existentes em outros países. Eu celebro o que acontece no Brasil. Celebro o fato de que 20 anos depois (da implementação) das cotas podemos dizer que as universidades brasileiras hoje refletem muito mais a população brasileira, em que estudantes brasileiros eram antes excluídos por um sistema racista. E foi preciso abrir essas portas (da ingressão nas universidades) à força. Quando digo à força isso significa com uma legislação que abriu forçadamente um sistema.

Então, sim, é maravilhoso quando eu escuto os resultados. Obviamente a cota é uma ação afirmativa que trata de corrigir os problemas estruturais do sistema democrático liberal que conhecemos E para mim isso não é reparação e sim o direito que se tem como cidadão. Até porque antes diziam que a universidade não é para os negros. Portanto, o Brasil deve se sentir muito orgulhoso assim como as comunidades negras que trabalharam para isso durante longo processo até alcançá-las (cotas) em um debate que fez a Corte Suprema implementá-las. 

É também algo extraordinário, porque 20 anos não é nada em termos de história de um país. Em 20 anos, vocês passaram de 3% a 51% da população negra nas universidades! Nós, mulheres negras, que promovemos mudanças estruturais na participação política em 30 anos conseguimos alcançar 30% da presença de mulheres na política. Então quando escuto esses dados sobre o Brasil me sinto muito feliz! Acredito que vocês devem divulgar esses dados muito mais do que divulgam, porque isso vai ajudar outros países, outros Estados, quando dizem: vejam o Brasil (como exemplo), vejam esses índices de pessoas com diploma e que antes estavam excluídas (das universidades) por serem negras, que estavam em situação de total desvantagem e agora fazem parte do desenvolvimento deste país. Estamos cientes de que a universidade é sempre um espaço privilegiado nas sociedades que abre as portas para o crescimento econômico. Espero que no Brasil haja muito mais profissionais afrodescendentes. 

É mentira dizer que não se sabe como fazer reparação, porque ela já foi feita para os judeus, para os japoneses”

Geledés – O que é para a senhora reparação?

Epsy – Reparação é reconhecer o que a História nos negou. Não é algo novo, que a humanidade desconheça, porque outros grupos já a fizeram. A humanidade quando reconhece que um grupo foi prejudicado, degradado ao extremo, toma decisões políticas, econômicas, culturais, que permitem devolver aos descendentes, às vítimas destes feitos históricos (as tragédias), os direitos que lhe foram negados. O que os afrodescendentes estão pedindo é que a sociedade, como um todo e através de suas instituições, reconheça essa humanidade e que possa abolir todo tipo de conceito de inferioridade em relação à comunidade negra instaurado no sistema organizacional e institucional dos Estados. 

Geledés – Para que essa mudança seja efetiva e prática, por qual caminho avançar?

Epsy – Precisamos começar pelos sistemas educativo e econômico. Quando chega-se a comunidades negras em que são evidentes as desvantagens como resultados desses feitos históricos, é preciso haver fortesinvestimentos para poder sanar todos esses anos de atrasos que impactaramas atuais condições dessas comunidades. É preciso haver um grande investimento estatal, e não pouco dinheiro, estabelecido como uma prioridade (dos Estados), com o intuito de resolver esse problema de exclusão histórica dos afrodescendentes. É um despertar. 

A segunda coisa a se fazer é uma releitura cultural do que se transmite no sistema educativo. Porque não é possível que haja reparação se seguirmos contando sempre a mesma história de vencedores e vencidos, de superiores e inferiores. Ou seja, é necessária uma transformação total do que se escreve e de como se transmite a História. 

A terceira questão é a identificação de tudo o que impacta nos sistemas de saúde, educação e política para fazer a reparação do pós-traumático em relação à escravidão. Há planos, há programas de saúde mental, com reconhecimentos específicos. Mas, para isso, é preciso capacitar os responsáveis por essas ações (de reparação) na Saúde e na Justiça, que acabam por reproduzir o racismo. Portanto, é preciso ficar evidente quem são as vítimas. 

Geledés  Como devem se dar esses investimentos?

Epsy – Quando se fala em dinheiro, em investimentos, é preciso haver reparação com a participação dos Estados e também do setor privado. Esse dinheiro precisa chegar àqueles que não têm nem as condições mínimaspara viver. E estou falando de necessidades básicas, como água potável, acesso às tecnologias elementares. 

Obviamente que falar de reparação requer um debate profundo e portanto não acredito que minhas propostas sejam únicas. O importante é discutir (a questão) e saber em que lugar se encontram os milhões de afrodescendentes perante este tema. Reparação é uma questão histórica e cada país, cada comunidade, cada governo local, precisa debater sobre como começar a fazê-la. Há diferentes perspectivas no Brasil, inclusive em seus diferentes Estados, em relação, por exemplo, ao que acontece em Barbados, um país caribenho. 

É mentira dizer que não se sabe como fazer reparação, porque ela já foi feita para os judeus, para os japoneses. Portanto, há uma história sobre a qual precisamos aprender. Por que temos que inventar algo que já existe? A humanidade já tem experiência nesse assunto. A Corte de Justiça Internacional também tem que reconhecer a necessidade de reparação e não dá para seguir se justificando em coisas que são injustificáveis. Ela tem condições de dizer quais são os grupos que estão em condição de inferioridade. 

Precisamos evidenciar os casos para fazer essa discussão. Os países do Caribe, por exemplo, de maioria de população negra, têm muita clareza sobre suas agendas de reparação. Inclusive, há uma agenda no Caribe que chega a quase 12 pontos de afirmações, creio. Os Estados Unidos também têm sua perspectiva sobre o tema, com muita pesquisa realizada. Já aqui, na América Latina, de uma forma geral, faltam aos acadêmicos e pesquisadores se posicionarem e apresentarem levantamentos. 

Como já disse aqui, as ações afirmativas que foram realizadas (no Brasil) para corrigir problemas estruturais democráticos do Estado liberal moderno não podem ser consideradas como reparações. Inclusive, elas não foram pensadas como reparação e, portanto, não podem ser encaradas como uma medicina para esses males históricos (da escravidão). Até porque, se for assim, qualquer coisa pode ser usada pelos Estados como reparação. E não é assim. Existem ações afirmativas, por exemplo, para as mulheres, para as pessoas com deficiência, para os povos afrodescendentes, para as populações LGBTQ+. Ou seja, as ações afirmativas são mecanismos de correção dos Estados. Então não vamos forçar a coisa, porque estamos falando do pior genocídio da história da humanidade. E seguem tratando os descendentes desta tragédia (escravidão) como seres inferiores. 

Portanto, a reparação é muito mais do que isso e é preciso pensar em respostas específicas, de forma coletiva, que tenham uma perspectiva política estratégica, com aprendizado de outros grupos que também sofreram genocídios. Na verdade, somos (afrodescendentes) sobreviventes de uma tragédia e daí a necessidade de investimentos e políticas que deem conta deste pós-trauma intergeracional, causado por esta catástrofe humana validada por tantos anos.  

Geledés– Como vê as políticas antirracistas desse atual governo brasileiro?

Epsy– O atual governo brasileiro colocou o tema da inclusão do povo negro com direitos de território das comunidades quilombolas, o que é um ótimo sinal ao colocar a temática como uma prioridade. Esse é um passo certo, que irá requerer investimentos. Institucionalizar um ministério (da Igualdade Racial) também é estar na rota correta, apesar de sabermos que há uma fragilidade política caso esse ministério seja desmantelado em uma próxima gestão. Portanto, entendo que o movimento negro no Brasil tem muita clareza de onde quer chegar. E para nós, do Fórum de Afrodescendentes, é um grande alívio ter um aliado do porte do Brasil. 

Geledés – Geledés promoveu neste ano um fórum, em evento paralelo na sede da ONU, em Nova York, em que debateu o racismo global diante do recrudescimento da extrema direita no mundo. Como a senhora vê esse aumento da extrema direita em países da América Latina, como na Argentina, por exemplo, onde foi recentemente eleito o líder da extrema direita Javier Milei?

Epsy – Estamos vivendo uma mudança geracional. Precisamos repensar a lógica de como até agora enxergamos o que é esquerda e o que é direita. Isso porque, no final das contas, as pessoas votam ou em contraposição ao que estava no poder ou em razão a uma situação conjuntural. Ou seja, os eleitores não votam mais pensando em direita ou esquerda, mas sim de acordo com o que cada candidato oferece em seu cardápio. E o candidato muda esse determinado cardápio de acordo com o que vai apetecer mais seus eleitores. E certamente esse menu que ele irá apresentar não irá solucionar os verdadeiros problemas de seu país. 

Apesar disso, hoje temos ferramentas para enfrentar os discursos de ódio, o racismo, a discriminação. Nunca tivemos, por exemplo, no mundo contemporâneo, um movimento tão grande e internacional diante de um assassinato de um negro como o que aconteceu com o de George Floyd. Inclusive com a participação de pessoas que não são negras. Nós, ativistasnegros e negras, estamos acostumados a fazer manifestações, mas desta vez contamos com populações não negras falando sobre essa realidade (de racismo), dizendo coisas. E veja, o Brasil também reagiu à sua própria história ao não aceitar um líder (de extrema direita), dizendo que não o queria mais. Não tenho muitos elementos para analisar essa lógica, mas sei que precisamos utilizar nossas forças, sem baixarmos a guarda para avançarmos em nossos direitos. 

“Há manifestações de extrema direita, mas não são as mesmas que as do passado e precisamos estar preparados, com novas reflexões e novos aliados”

Geledés- Mas as ameaças da extrema direita persistem. 

Epsy – Quando houver uma situação em que se percebe que haverá retrocessos, é necessário fazer alianças com diferentes setores. Alianças não apenas com setores tradicionais do movimento negro, mas também com outros setores. É preciso abrir os olhos e ver quais setores privados ou organizações que não são negras, ou não são feministas, com as quais se é possível fazer alianças. Digo isso porque a sociedade que temos hoje certamente não será a mesma em 20 anos. Isso se quisermos realmente que a dignidade nesta sociedade alcance a todos, e que haja inclusão e direitos para todos. Até porque os ativistas do movimento negro entendem que essas são ações não apenas em favor de nossas comunidades, mas para uma sociedade mais justa como um todo. Recuperar a humanidade é este o sentido, porque se o outro não está bem, como eu posso ficar bem? Por isso estamos em busca de um novo pacto social. 

Começamos por nossa gente, porque ela é que está mais abaixo. Mas quando pensamos em transformação, pensamos em paridade entre homens e mulheres, em reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, estamos pensando nas comunidades LGBTQ+, e não estamos falando de um mundo negro, mas de um novo projeto de sociedade que combate esta forma insana de exclusão de milhares de pessoas e que violenta outras milhares. Este projeto de uma nova sociedade fala sobre os cuidados que devemos ter uns com os outros como seres humanos. Portanto, sim, há manifestações de extrema direita, mas não são as mesmas que as do passado e precisamos estar preparados, com novas reflexões e novos aliados.

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