Representações de mulheres negras no cinema e na literatura brasileira

A importância do cinema como fonte histórica vem sendo assumida por várias/os historiadoras/es desde os anos de 1960 e 1970. Elevado à categoria de “novo objeto”, foi incorporado ao fazer historiográfico a partir das mudanças introduzidas pela Nova História. O historiador Marc Ferro foi um dos responsáveis por essa incorporação, ao discutir o cinema como documento histórico que oferece uma visão importante das sociedades que os fizeram e os assistiram. 

Não podemos esquecer que ao longo do século XX o cinema foi ganhando espaço e conquistando um grande público. Os diálogos e imagens que emergem das telas podem ser apreendidos como produtos e processos do imaginário social. O cinema brasileiro, por exemplo, em muitos casos, apresenta imagens racistas e sexistas acerca das mulheres negras. Um olhar mais atento é capaz de identificar, em um número razoável de filmes nacionais, a proliferação de imagens que reforçam hierarquias e estereótipos relacionados ao gênero e à raça.

A dinâmica cinematográfica contém algo instigante, pois as imagens, os sons e os diálogos que difunde são capazes de incidir sobre nossos imaginários e práticas sociais. Mesmo uma obra de ficção é capaz de influenciar amplamente nossas visões acerca de determinados eventos, relações sociais, pessoas e lugares. Neste caso, as representações difundidas sobre as mulheres negras no cinema brasileiro participam também da construção das subjetividades e das relações sociais, raciais e de gênero experimentadas por estas mulheres em sociedade. É neste sentido que importa analisar estas representações, desvelar os seus fundamentos históricos e culturais, tratando-as como fontes de estudos que possuem historicidade.

Os questionamentos mais frequentes feitos ao cinema brasileiro, por intelectuais e artistas negras e negros, é o de que nossos filmes não apresentam personagens negros reais ou individualizados, mas apenas estereótipos e caricaturas: “o/a escravo/a”, “o sambista”, “a mulata boazuda”, “pretos-velhos”, “mães-pretas”, “mártir”, “negro de alma branca”, “nobre selvagem”, “favelado/a”, e tantos/as mais. 

Muito além dos estereótipos construídos, podemos acessar também as imagens de controle, mencionadas pela pensadora, intelectual e feminista negra Patrícia Hill Collins, nos idos anos 1980. Collins trata das imagens que colocam mulheres negras em lugares naturalizados de subserviência e subalternidade como prostitutas, mulheres hipersexualizadas ou assexualizadas e boçais, que nos remete a um caráter amplo e político de representatividade. Indo na mesma linha de análise da intelectual Lélia Gonzalez, que também chama atenção para as “noções de mulata, doméstica e mãe preta”, e, portanto, para o modo como “as ideologias racistas e sexistas permeiam a estrutura social” e se tornam hegemônicas, ao serem “vistas como naturais, normais e inevitáveis”

Pensando nesses contextos e possibilidades, no meu livro Mulheres Negras em Rio, 40 Graus [1955]: Representações de Nelson Pereira dos Santos, empreendi uma análise historiográfica da obra de um cineasta brasileiro considerado um dos precursores do chamado Cinema Novo, movimento cinematográfico que se desenvolveu no Brasil, especialmente nas décadas de 1950 e 1960. Os filmes deste cineasta influenciaram toda uma geração que pretendia inovar os parâmetros do cinema nacional, a fim de revelar, através das lentes do cinema, as identidades do povo brasileiro, opondo-se, sobretudo, às produções cinematográficas nacionais de influência hollywoodiana.

A minha análise transcorre a partir de três personagens negras que representam diferentes grupos de mulheres e suas questões cotidianas. Há aspectos da história das trabalhadoras domésticas e das operárias de fábrica, nuances sobre a rotina da maternidade através das representações de mães, esposas e chefes de família. Além disso, aparece o processo de construção de afetividades/sexualidades a partir das imagens de “rainhas de escola de samba” nos anos 1950 no Rio de Janeiro. Local que era, até então, capital federal, ou seja, o centro de poder no Brasil com suas flagrantes contradições. 

Tais representações são protagonizadas pelas personagens Ana, mulher negra e trabalhadora doméstica, casada com um homem negro desempregado e por vezes alcoolizado. Elvira, também negra, trabalhadora doméstica, viúva e mãe de seu único filho, protagoniza imagens históricas de constantes vulnerabilidades. E Alice, filha de Ana e noiva de um operário negro de fábrica, é uma mulher jovem e operária, negra de tez clara, aspirante a rainha de escola de samba, representando uma possível ascensão nos moldes da modernidade. 

Tais representações se configuram na construção de um vocabulário mais refinado de Alice, possivelmente por ter frequentado por mais tempo a educação formal, diferente de sua mãe Ana e sua vizinha Elvira. Como operária de fábrica, parece associada às novas oportunidades de emprego e de uma possível ascensão socioeconômica. Lembrando que as representações das mulheres operárias, diferente das trabalhadoras domésticas, fazem parte das novas perspectivas de trabalho, abertas com o processo de industrialização e urbanização do Brasil na primeira metade do século XX. 

Oportuno mencionar que a literatura do século XIX, de um modo geral, também produziu e disseminou uma série de representações de mulheres negras que fortemente povoaram o nosso imaginário social. Trata-se de imagens de mulheres submissas, subservientes, promíscuas e ignorantes. Obras como as de Aluísio de Azevedo, José de Alencar e Bernardo de Guimarães, ilustram muito bem estas imagens, construídas e posteriormente reiteradas no cinema nacional. 

Na literatura brasileira as mulheres negras foram amplamente retratadas ocupando os espaços da cozinha e do prostíbulo, vivendo situações sociais de subalternidade em trabalhos mal remunerados e desmoralizantes. Além de relações de gênero que as marcaram como objetos de prazer sexual, como seres mais lascivos e superexcitantes que instigam “naturalmente” o domínio masculino sob seus corpos. Já as mulheres brancas foram representadas como ideais estéticos, como “moças de família”, mais propensas ao casamento e à maternidade nos moldes cristãos e patriarcais. Exemplo clássico apontado nas personagens femininas de Jorge Amado no século XX, que quando não correspondem a esses modelos idealizados, são punidas por graves infortúnios.

A constante reiteração de representações que reforçam a inferioridade, submissão, opressão, exploração sexual e do trabalho dos negros e negras, seja na literatura, no cinema histórico ou de ficção, ou na própria historiografia, acabam legitimando e reforçando a discriminação e o preconceito racial e sexual em nossa sociedade. Mesmo com o fim do colonialismo formal, as representações das mulheres negras são marcadas por saberes colonialistas que necessitam ser desvelados. 

Entretanto, os estudos feministas direcionados às mulheres negras no Brasil, têm revelado outras representações de suas subjetividades e experiências históricas, em busca da pluralidade de suas vivências e da desnaturalização de representações depreciativas e estereotipadas que historicamente marcaram suas relações sociais. Tais estudos apontam também para o caráter político e social destas representações, ao mesmo tempo em que buscam revelar outras possibilidades de atuação para estas mulheres na história, enfatizando o seu real protagonismo.

Mais do que imagens inofensivas, as representações operam como dispositivos que orientam a construção de identidades, subjetividades e relações sociais, e têm, por isso, resultados palpáveis na vida socialmente constituída. Ancoradas no imaginário social, as representações tornam-se inteligíveis e comunicáveis por meio de “discursos” que circulam nas mais variadas linguagens. A historiografia feminista baseada em teorias interseccionais, principalmente a partir dos feminismos negros, mostra-se bastante reveladora e crítica desse imaginário onde gênero, raça, classe e outros marcadores sociais estão fortemente imbricados.

Nesse sentido, em minha tese de doutorado  RACISMO, SEXISMO E INTERSECCIONALIDADES: representações de mulheres negras nas adaptações cinematográficas da literatura de Jorge Amado por Nelson Pereira dos Santos (1977 – 1987); busco investigar as condições de produção, sentidos, significados, valores, crenças, imaginários, práticas sociais e modos de subjetivação que informam as imagens das mulheres negras, não perdendo de vista o caráter histórico e cultural das representações dessas mulheres negras, em curso na cultura e sociedade brasileira.

Fonte: filme Jubiabá – Nelson Pereira dos Santos

Vale ressaltar que Jorge Amado e Nelson Pereira dos Santos, mesmo explicitando um ideário contrário à visão cientificista do século XIX e início do XX, em que a população negra era considerada símbolo do que é de mais retrógrado, repulsivo, imoral, lascivo, violento e de pouca inteligência, temas esses muito bem trabalhados em obras como Jubiabá e Tendas dos Milagres, não vão além, quando acreditam que a mestiçagem era a saída para os problemas sociais/raciais presentes no Brasil. Assim, deixam sem questionamento, por exemplo, o aspecto colonialista e eurocêntrico da cultura brasileira, algo que está introjetado na construção de uma identidade nacional forjada num contexto “pacífico” e cordial em relação ao branco-colonizador

Fonte: filme Tendas dos Milagres – Nelson Pereira dos Santos

As representações veiculadas nos discursos, palavras, mensagens e imagens cinematográficas, bem como na literária, podem servir de guias para a interpretação e construção da realidade. Portanto, uma outra epistemologia que valoriza o protagonismo e as subjetividades da população negra e das mulheres negras, especificamente, torna-se desafiadora. Esse exercício não é fácil, pois as estruturas de poder, calcadas numa base eurocêntrica, colonialista e sexista, resistem à desconstrução de “verdades” que não se sustentam quando confrontadas a partir de realidades possíveis, como bem faz o cinema negro como testemunha de novos paradigmas. Mas esse ponto de análise fica para uma outra prosa, onde a branquitude é convocada a reconhecer uma outra história.

Assista ao vídeo da historiadora Renata Melo Barbosa do Nascimento no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

 O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); e EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais).


Renata Melo Barbosa do Nascimento     

Doutora em História – UnB; 

E-mail: [email protected];      

Instagram @renata_melo2016D.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

+ sobre o tema

André Rebouças e a reforma dos portos brasileiros (1866-1878)

O texto da coluna visa discutir as rupturas e...

Quilombo: A Arte da Memória Negra sobre Palmares

Uma das máximas do pensamento de Beatriz Nascimento é...

Clóvis Moura: escrita intelectual negra no Mundo Atlântico

A escrita intelectual negra constitui uma temática que, nos...

No Maranhão, o Bumba meu boi é brincadeira afro-indígena

O Bumba Meu Boi é uma das expressões culturais...

para lembrar

Ignorância Branca: de quem são as mãos que escrevem os cânones brasileiros?

O que há em comum nas diversas coletâneas de...

Exposição virtual: Adé Dudu: Caminhos LGBT+ na luta negra

Com muita satisfação, anunciamos a abertura da Exposição "Adé...

Expedito e Gildemar: os Dois Candangos e as memórias do pós-abolição em Brasília

No dia 05 de maio de 1962, o jornal Correio Braziliense noticiava na Coluna “Visto, Lido e Ouvido”, de Ari Cunha, o seguinte: “O...

Onde estão corpos trans na historiografia brasileira?

Os/as pesquisadores/as de Clio têm sido tensionados/as ao longo dos anos a escrever sobre o mundo de modo que ultrapassem a perspectiva disciplinar. Isto...

Ignorância Branca: de quem são as mãos que escrevem os cânones brasileiros?

O que há em comum nas diversas coletâneas de história da historiografia brasileira – campo que trata dos modos pelos quais historiadores e historiadoras...
-+=