Ressignificar a nossa história

Ancestralidades expressam práticas e lutas que não se encerram no passado

A atuação do movimento negro é permanente e histórica, mas a morte de George Floyd e seus desdobramentos nas diferentes partes do mundo parecem ter descortinado o véu (conceito elaborado pelo intelectual americano Du Bois) que nos apartava da nossa própria história, e passamos a enxergar o racismo que atravessa múltiplas dimensões.

Equidade racial é um eixo norteador do trabalho desenvolvido pela Fundação Tide Setubal no enfrentamento das desigualdades. No entanto, desde 2020, amadurecemos um sentimento de que deveríamos ir além e pensar qual seria uma contribuição mais efetiva e com maior perenidade de uma instituição do investimento social privado na luta antirracista e a favor de uma sociedade mais democrática e mais justa.

Dessa inquietação nasceu a plataforma Ancestralidades (ancentralidades.org.br), desenvolvida em parceria com o Itaú Cultural. Partimos de três eixos fundantes —democracia e direitos humanos; artes e cultura; e ciência e tecnologia— para reunir estudos, pesquisas e conceitos relativos a marcos históricos, biografias e trajetórias e narrativas emergentes. Para isso, contamos com o trabalho do Núcleo Afro do Cebrap, na produção de verbetes, e da empresa White Rabbit para identificar os sinais de desenvolvimento de tendências e questões com origem nas diversas plataformas midiáticas.

A plataforma pretende ser um “hub” que possibilitará a navegação em diversos espaços virtuais de produção de conhecimento de negras e negros em todas essas dimensões. O trabalho está apenas começando, mas, ao lado do conselho orientador, formado pela filósofa Sueli Carneiro, pelo músico Tiganá Santana e pela escritora Ana Maria Gonçalves, optamos por lançar a plataforma e, ao mesmo tempo, complementá-la com escutas para aprofundamentos e novos desdobramentos.

Ancestralidades, como nos dizem nossos conselheiros, expressam as experiências e lutas de negros e negras africanos e afrodescendentes no Brasil que não se encerram no passado. Para mim, essa é uma das belezas abarcadas por esse conceito. É um tempo espiralar, não linear ou compartimentado, pois é a atualização viva da memória no presente, que faz uma conexão com o que precedeu: pessoas, ideias, fenômenos, sentimentos, entidades, lutas, artes, natureza. O que importa é que a ancestralidade habita os corpos hoje e costura as diversas territorialidades, temporalidades e experiências originadas dos corpos presentes.

O encontro com nosso conselho e o desenvolvimento desse projeto têm me proporcionado diversos aprendizados, e sou muito grata a todos eles pelas rachaduras que abriram no meu olhar eurocêntrico para a história, possibilitando a cada dia enxergar melhor e com mais lentes a boniteza (como diria Paulo Freire) de uma história muito mais rica e plural da sociedade brasileira.

Manter a história construída por negras e negros viva no presente é nosso dever como sociedade brasileira. É reparar o apagamento pelo qual somos responsáveis. É reconhecer-nos nessa pluralidade em que mais da metade de nós é negra, 56,2% —42,7% são brancos, e grupos indígenas e asiáticos totalizam 1,1%.

Só ao conhecermos o passado e reconhecermos seus personagens, fatos e movimentos políticos, nas diferentes esferas da sociedade, é que poderemos reconstruir o Brasil com toda nossa potência e possibilidade de contribuir de forma significativa para um mundo mais amoroso e alicerçado pelo cuidado das nossas gentes e do planeta.


Maria Alice Setubal (Neca)

Doutora em psicologia da educação (PUC-SP), socióloga e presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal

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