Rompendo com os silêncios

O patriarcado projetou um modelo ideal de mulher, em seu desenho deve ser ela doce, recatada, afetuosa, silenciosa e submissa. O racismo completa esse imagético e revela que ela deve ser branca e de longos cabelos lisos. O mito da fragilidade contempla essas duas estruturas violentas e reforça que uma mulher negra não se encaixa nesse papel. A sociedade brasileira criou um estereótipo em que a mulher negra foi sexualizada, coisificada, desumanizada e ainda subjugada ao silêncio, pois se protestam, são logo taxadas de barulhentas, negras raivosas, enquadradas na loucura.

Em meus 37 anos de vida, enquanto mulher negra pude diversas vezes e infelizmente, presenciar pessoas usando suas vozes para realizar essas afirmações, vi a mídia reforçando o racismo e machismo e tive relações com pessoas que reproduziam essas violências.

A medida que fui me letrando racialmente e fui me tornando uma mulher que acredita nos caminhos da libertação e da luta, a partir de uma leitura feminista negra, aprendi que a exclusão e a solidão, vinham como punição, para mulheres negras que falam criticamente, que têm um diálogo aberto e que denuncia opressões. Mulheres que não “passam pano” para machismo e racismo.

Há um desejo do sistema opressor que mulheres negras, que leem e criticam o mundo, passem a performar a feminilidade de acordo com os padrões citados acima, espera-se a docilidade e a submissão, como passaporte para espaços em que há uma performance da branquitude e do patriarcado. Ao compreender que a fala é uma ferramenta, escancara-se as mazelas da colonização, usando a voz para denunciar e anunciar sua vida privada e assim trazer à tona a dor causada pela estrutura da sociedade. Para ilustrar o que trago, partilho uma experiência no universo acadêmico, quando a hierarquia acadêmica de um homem branco sob uma estudante negra, diminui sua subjetividade e suas experiências privadas, aí está ocorrendo uma vez mais a tentativa de silenciar, é a punição por aquela mulher estar em um espaço de poder, que não foi a priori, projetado para que ela estivesse. 

A voz é uma ferramenta de luta a favor da vida e muitas vezes, a dor é o combustível que acende a chama do fogo contra as opressões. Uma mãe preta que perdeu seu filho para violência policial militarizada, protesta! Outras mães e pessoas afetadas por essa dor, unidas fazem barulho. Rompem com o silêncio, denunciando um sistema truculento, colonial, com alvo na pele alvo.

Nós mulheres negras brasileiras, somos desencorajadas a todo tempo, em nossa sociedade existem diversos mecanismos para nos desmobilizar, há que se ter atenção! Nos colocam em competição umas com as outras, nos silenciam, tentam nos fazer acreditar que existem padrões e que temos que nos adequar, as punições são diversas, como o exílio, a exclusão, a desmoralização. Não ceder ainda que seja cansativo é necessário, encontrarmos meios de nos unir, de nos acolher e de nos aquilombar. bell hooks, uma de nossas vozes acolhedoras, curativas e anunciadoras nos diz:

“Fazer a transição do silêncio à fala é, para o oprimido, o colonizado, o explorado, e para aqueles que se levantam e lutam lado a lado, um gesto de desafio que cura, que possibilita uma vida nova e um novo crescimento. Esse ato de fala, de “erguer a voz”, não é um mero gesto de palavras vazias: é uma expressão de nossa transição de objeto para sujeito- a voz liberta.” ( hooks, 2019,p.38/39)

Ela nos encoraja para que não nos calemos, para que anunciemos nossas dores, para que denunciemos os opressores, e que não nos dobremos sob as punições. O que não é curativo, é continuar em tentativas vãs em fazer parte de espaços e relações que desumaniza nossa existência. Movimente-se, fale, faça barulho! O opressor que deve ficar constrangido! Seja sujeito de sua existência, use sua voz!


Referência: hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante. 2019.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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