Roubo na adolescência: se você for branco, não acontece nada

Uma confissão. Eu devia ter uns 16 anos quando, com amigas do colégio, tivemos a fase de ir a uma loja de departamento e roubar coisas. Sim, era ridículo. E, claro, errado (e devia ser por isso mesmo que a gente fazia). Mas adolescentes são ridículos. Essa é uma fase em que fazemos coisas estúpidas (provavelmente para nunca mais fazer na vida). Foi o que aconteceu com essa fase do roubo.

Por Nina Lemos, Do Blog Nina Lemos 

Foto de um homem branco roubando um produto no mercado e escondendo dentro da jaqueta
(Foto: iStock)

Um dia, depois da escola, de uniforme e tudo (de escola particular) roubamos uns chocolates e um apontador de lápis de sobrancelha (algo que a gente nem usava). O segurança viu. Fomos parar na salinha, onde ficamos minutos que pareceram horas. Um segurança foi superduro, nos deu uma mega bronca e disse que ia ligar para os nossos pais. Não ligou. E minha mãe vai saber lendo esse texto, eu com quase 50 anos. Fomos embora sem tomar chicotadas, sem ser presas, mas assustadas o suficiente para nunca mais fazer tamanha estupidez na vida.

Eu tinha esquecido desse episódio até olhar o Twitter ontem e ver o que o jornalista e apresentador André Fran postou: “Confissão, quando eu era moleque ia com amigos de colégio no Shopping da Gávea roubar adesivo/etiqueta em loja de roupa. Quando os seguranças pegavam a gente, davam esporro, diziam que iam chamar o responsável… e a gente saía correndo rindo. Nunca fui chicoteado. Foi racismo, sim!”.

André falava do caso que chocou todos nós essa semana: a história do adolescente negro que foi amarrado, torturado a chibatadas em um supermercado de São Paulo. Ele tinha 17 anos. A mesma idade que nós, brancos de classe média, como eu e André, tínhamos quando praticamos tais delitos. A diferença: a gente, branco, podia brincar de roubar ( e provavelmente os brancos de classe média de hoje ainda podem). Enquanto isso, os negros, só de entrarem no supermercado para comprar já eram (e são) tratados como ladrões.

O que se seguiu aos comentários do André no Twitter foram várias confissões de outras pessoas brancas de classe média como nós, que roubaram, e não foram presas.”Roubei um CD quando eram adolescente e fui pega pelo segurança. Me mandaram devolver e nem fui repreendida. Foi racismo, sim”, disse outra.

Sim, eu precisei de todos esses anos para perceber que roubar em supermercado de zoeira é um privilégio branco. Que você tem que ser de classe média para testar os limites impunemente. Conversando com outra amiga, ela me disse: “mas todas as rebeldias são privilégio branco: fumar maconha, pular catraca do metro, tocar campainha, roubar chocolate”. Claro, óbvio. Do nosso lado branco, esquecemos que se um negro tocar a campainha podem chamar a polícia. Se roubar, pode tomar chibatadas. Se pular uma catraca, pode tomar um tiro.

Enquanto nós, brancos de classe média, passamos a adolescência testando os limites das autoridades da vida como se estivéssemos em um playground. E a maioria de nós sobrevive.

É óbvio, claro, óbvio ululante que roubar é errado. Erradíssimo. Não estou aqui defendendo o roubo. Mas, claro, ninguém pode tomar chibatadas e ser torturado por roubar um chocolate (ou por qualquer outro motivo, tortura é crime contra a humanidade). Essa é uma herança da escravidão que deve nos encher de vergonha.

Se é branco e rico, é “distúrbio”

Roubar coisas de lojas, na maioria das vezes sem necessidade, tem até um termo em inglês: “shoplifter”. Segundo pesquisa realizada nos Estados Unidos, 25% das pessoas que praticam o ato são crianças. E a maioria não precisa. Em geral, roubam coisas bobas e dispensáveis, pelo prazer da adrenalina. Claro, adultos que crescem fazendo isso podem tem um problema grave, muitos são presos, precisam de tratamento. No caso de brancos ricos, eles têm distúrbios. No caso de negros ou pobres, são bandidos. Sim, o mundo é horrível, racista e classista.

No caso de E., 17 anos, ele foi tratado com chibatadas. E a gente sabe: não aconteceria o mesmo se ele fosse um menino branco com uniforme de escola particular em um bairro de classe média. Vocês são capazes de imaginar a cena? Não, nem eu. E, claro, esse tipo de coisa (dar chibatadas em uma pessoa) não pode acontecer. Nunca mais.

 

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