Votação aconteceu após meses de mobilização de milhões de mulheres argentinas; ativistas dizem que a luta continua
O Senado da Argentina rejeitou, na madrugada desta quinta-feira (9), o projeto de lei sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE), aprovado na Câmara dos Deputados do país em 13 de junho. A decisão aconteceu em meio a uma mobilização que deu ânimo a milhões de mulheres na Argentina e em diversos outros países onde o aborto ainda não é legal.
Após um debate exaustivo, que se estendeu por quase 17 horas, enquanto do lado de fora da Casa, debaixo de chuva, milhares de mulheres exigiam a aprovação do projeto, a votação começou por volta das 3 horas da manhã, e confirmou o placar já esperado: 38 votos contrários ao projeto e 31 votos a favor, com uma ausência por licença-maternidade e duas abstenções.
A histórica batalha pela legalização do aborto no Congresso argentino no último período, protagonizada pelas mulheres argentinas, em especial, pelas mulheres jovens e adolescentes, durou quatro meses.
Depois de 13 anos da primeira apresentação do projeto de lei, formulado pelas organizadoras da Campanha Nacional pela Legalização do Aborto, a Câmara de Deputados do país aceitou pela primeira vez discutir o tema. No dia 14 de junho, depois de 700 exposições realizadas em menos de três meses e uma sessão de 23 horas seguidas, uma aliança formada entre deputados e deputadas, acompanhados por uma multidão nas ruas, aprovou o projeto de lei e o tema passou para o Senado com grande impulso.
No entanto, a pressão de setores políticos conservadores e religiosos conseguiu diminuir o ritmo das discussões e aumentar as posições contrárias nas semanas anteriores à votação.
Como votaram os diferentes blocos
A votação da madrugada desta quinta-feira (9) demonstrou uma polarização dentro dos diferentes setores que compõe o Senado.
No campo governista, a maior coalizão, liderada pelos senadores do partido Cambiemos, que reúne outros partidos como União Civil Radical (UCR) e Proposta Republicana (PRO), expressou essa divisão de opiniões, mas o voto contrário ao projeto de lei foi majoritário, com 15 votos, contra 8 a favor.
A segunda maior coalizão, do Interbloco Argentina Federal, formada pelo Partido Justicialista, também refletiu a polarização interna em torno do tema do aborto, com 12 votos a favor, 11 contrários e uma abstenção.
O chefe da bancada justicialista votou a favor da legalização do aborto no país, fundamentando sua decisão na separação entre a religião e o Estado. “O século XXI é o século da mulher. E aqueles que não compreendem isso, ficarão de fora da História. A religião não pode ser imposta às normas que dizem respeito ao conjunto do país, que têm a natureza civil de um Estado Laico”, defendeu o senador Miguel Ángel Pichetto.
Na ocasião, Pichetto também criticou o presidente do país, Maurício Macri, por não ter se colocado à frente do debate.
O bloco da Frente para a Vitória, do qual faz parte a ex-presidenta do país, Cristina Kirchner, foi o que somou mais votos a favor do projeto, com 8 votos favoráveis e um voto contrário, o da senadora Silvina Garcia, desrespeitando a decisão oficial da coalizão, de que todos seus integrantes votariam a favor.
Ao anunciar seu voto, a ex-presidenta argentina, Cristina Kirchner, defendeu sua decisão afirmando que “não há duas vidas, três vidas, há uma só vida e temos que defendê-la sempre”, recordando as leis progressistas aprovadas durante sua gestão, como o casamento igualitário, a lei de identidade de gênero e da educação sexual e integral. Kirchner também afirmou ter mudado de posição em relação ao aborto devido às “milhares e milhares de garotas que foram às ruas abordar a questão feminista”.
Os outros blocos minoritários mantiveram a posição da maioria dos senadores, votando, em sua maioria, contra a aprovação do projeto de lei, com exceção dos senadores da Frente Ampla, Pino Solanas e Magdalena Odarda.
Futuro
Após a decisão do Senado na madrugada desta quinta-feira (9), começam a ser delineadas as possibilidades futuras. Segundo o artigo 81 da Constituição do país, todo projeto de lei que é “desprezado” por uma das instâncias do Congresso, só pode ser votado novamente no próximo ano
No entanto, análises consideram que em 2019, quando acontecem também as eleições presidenciais no país, o quadro pode continuar igual ou se agravar. Em período de eleição, as atividades das Câmaras são reduzidas, o número de sessões também diminui e, de modo geral, os diversos blocos optam por não votar temas que sejam “polêmicos”, como a proposta de uma lei sobre aborto, que exige um longo debate e coloca em jogo as diversas posições do eleitorado dos congressistas que pretendem se reeleger ou concorrer a novos cargos.
Uma outra proposta foi anunciada pelo chefe de Gabinete do governo de Macri, Marcos Peña, que confirmou que o governo analisa a inclusão da despenalização do aborto na reforma do Código Penal, que será apresentada no dia 21 de agosto no Congresso. Segundo esta proposta, as mulheres deixariam de enfrentar o risco de ir para a cadeia por interromper a gravidez, mas suas vidas continuariam em perigo pela clandestinidade e falta de acesso gratuito aos procedimentos, realidade que o projeto de lei apresentado pelo movimento feminista pretendia oferecer respostas.
Onda verde
Do lado de fora do Senado argentino, milhões de mulheres seguiam se manifestando à espera de um resultado que para elas parecia irreversível: a vitória da aprovação do projeto de lei.
Organizadas numa massiva mobilização nos últimos quatro meses, que ficou conhecida como “marea verde” [onda verde, em português], as integrantes da Campanha Nacional pela Legalização do Aborto realizaram uma gigantesca vigília do lado de fora do Congresso.
Ao longo de toda a sessão, diversos senadores se encarregaram de deixar uma mensagem de apoio às manifestantes, como a do senador Miguel Ángel Pichetto: “Mais cedo do que tarde, em um dia mais iluminado do que este dia cinza e de chuva, as mulheres terão a resposta que necessitam”.
Apesar da derrota no Senado, a campanha realizada pelas mulheres argentinas é considerada vitoriosa porque demonstra uma mudança inegável na sociedade argentina, pois incorporou o aborto na agenda política, como uma demanda de uma grande parcela da sociedade. A legalização do aborto no país continuará sendo uma “dívida histórica da democracia”, como afirmou a integrante da campanha Lucila Szwarc, em entrevista com o Brasil de Fato.