Severo D’Acelino e a produção textual afro – brasileira

Por Rosemere Ferreira da Silva*

 

 

RESUMO:

O artigo em questão procura discutir, sob o ponto de vista de formação da literatura afro-brasileira, a produção cultural e textual do intelectual Severo D’Acelino na contemporaneidade. De que maneira, os textos de Severo podem ser lidos e relacionados às discussões que envolvem a participação de afro -descendentes na sociedade brasileira? Parte, do perfil biográfico do escritor, foi traçada para que o leitor conheça a sua trajetória de formação intelectual e de intervenções nas atividades culturais em Sergipe. A discussão sobre as atuações do intelectual hoje procura levantar questionamentos, principalmente, sobre: Que papel o intelectual assume na sociedade contemporânea como articulador da cultura? Quais são os dilemas do intelectual na sua política de cultura em relação ao poder hegemônico no Brasil?

 

Uma leitura crítica da poética de Severo D’Acelino busca relações crítico -literárias com outros escritores da literatura afro-brasileira. E a publicação do jornal Identidades é destacada, com o objetivo de problematizar as discussões em torno das questões sociais, culturais e políticas que envolvem a afro-descendência no Estado.

 

A produção cultural do escritor Severo D’Acelino em Sergipe está voltada para a discussão da afro-descendência como uma das principais formas de questionamento, na sociedade contemporânea, que envolve a participação direta de afro -descendentes nos mais diferentes setores sociais do Estado. A poesia escrita por D’Acelino bem como os artigos publicados e os projetos educacionais coordenados pelo escritor refletem uma preocupação constante em educar os sergipanos na direção de uma cultura produzida para marcar a importância da literatura afro-brasileira como um lugar de expressão significativo que problematiza as hierarquias sociais construídas, as relações de poder disseminadas socialmente, a formação de identidades, o combate ao preconceito e a discriminação racial e de gênero e ainda, a valorização da auto -estima como principal ponto de partida na luta contra a formulação de estereótipos.

 

O trabalho de Severo D’Acelino começa em fins da década de 60 do século XX, mais precisamente em 68, no Estado de Sergipe e na Bahia com o seu envolvimento na militância do Movimento Negro e em atividades teatrais, o que acabou rendendo -lhe participações em dois filmes: Chico Rei e Espelho D’Água e no seriado Teresa Batista Suas atividades culturais sempre estiveram ligadas à Casa de Cultura Afro-Sergipana,
Instituição comprometida com as representações culturais e sociais da afro -descendência no Estado. Durante quase 40 anos de trabalho em torno das questões sociais, políticas e educacionais direcionadas à causa do negro, Severo publicou em 2002, apenas um livro de poemas, Panáfrica África Iya N’la e editou de 2001 a 2002 o jornal Identidades, considerado um dos principais veículos de comunicação pensado para incentivar o intercâmbio de idéias entre a comunidade e o poder público em Sergipe.

 

O jornal tratava de informar a população sobre um conteúdo, cuja abordagem não observamos nas edições dos jornais convencionais. A leitura da afro -descendência em Sergipe, associada ao cenário das discussões nacionais sobre as populações minoritárias, era mediada pelo trabalho de pesquisadores sergipanos e de outros estados do país. O Identidades constituía, desta forma, um fórum riquíssimo de debates entre
intelectuais, população e alguns segmentos de poder no Estado. Em 2004, Severo D’Acelino coordenou o projeto “João Mulungu vai às Escolas”, com auxílio da Lei 10.639, destinado a discutir nas escolas públicas a inserção do afro -descendente na sociedade sergipana, através do exercício da cidadania de uma comunidade, que busca uma articulação de cultura negra fundamentada na discussão da questão étnico -racial, como prioritária no que entendemos como cultura afro -brasileira. Atualmente Severo se dedica a escrever o seu segundo livro de poemas chamado Quelóide.

 

Pelas pesquisas realizadas em arquivos, através de levantamento de fontes bibliográficas, entrevistas, leituras, empreitadas em bibliotecas, livrarias e principalmente discussões em torno da questão da formação de identidades do afro -descendente em Sergipe, tenho convicção de que só podemos nos referir a uma produção literária, intelectual e cultural voltada para uma inserção e um diálogo com a formação da literatura afro-brasileira em Sergipe, a partir do trabalho realizado por Severo D’Acelino.

No estudo realizado da historiografia da literat ura sergipana, escrita por Jackson da Silva Lima1, há registro de poetas que contribuíram literariamente apenas por usarem a temática do negro como um elemento de referência. Estes textos foram escritos no século XIX e a forma de abordagem do negro geralme nte se debruçava sobre o lamento, o pranto, a lamúria da escravidão, a escravidão como castigo, a saudade dos negros escravizados de sua terra natal, a exploração da sexualidade da negra escravizada, o ímpeto pela defesa da abolição, marcados à distância p ela observação de um olhar do poeta deste século praticamente externo a toda essa problemática.

 

Os autores sergipanos citados por Jackson da Silva Lima são: Moniz de Souza, Constantino Gomes, Pedro Calasans, Bittencourt Sampaio, Oliveira Campos, Tobias Barreto, Silvio Romero, Severino Cardoso, Jason Valadão, Alves Machado, Antônio Diniz Barreto e Prado Sampaio. Os textos desses poetas ou estão compilados na História da Literatura Sergipana ou em Os Palmares Zumbi & Outros textos sobre a escravidão . O
primeiro publicado em dois volumes em 1986 e o segundo em 1995. A história da literatura sergipana não abrange textos contemporâneos. Ou seja, falta a esta história uma leitura mais significativa sobre o modo de representação do afro -descendente sob o ponto de vista de formação de uma identidade cultural.

 

Não posso falar em literatura afro-brasileira em Sergipe sem antes voltar a estes escritores para mostrar que não houve, ainda que superficialmente, uma continuidade de escrita historiográfica sobre um contex to de abordagem que envolva o negro/ o afro – descendente. Observo que existe um espaço vazio entre os textos desses escritores do século XIX e a literatura afro-brasileira que veio a fortalecer-se no século XX. Não considero que os textos dos autores citado satisfaçam um estudo mais representativo da 1 LIMA, 1996

“presença” do negro na literatura, como muitos críticos denominam. São escritos concentrados num contexto político, histórico, social e cultural totalmente de desvantagens à leitura do afro-descendente como parte de uma identidade nacional.

Esses textos são fundamentais para a historiografia literária, mas não atendem a leitura de representações literárias voltadas para o estudo da literatura como produção cultural realizada em Sergipe, cuja abordagem esteja des tinada a discutir questões relativas à preservação da cultura negra no Estado e, ainda a levantar problemas sobre a participação mais direta do afro-descendente no processo sócio-cultural, político e
econômico, de modo que as diferenças étnico -raciais sejam percebidas como necessárias ao reconhecimento de uma sociedade multicultural.

 

Já no século XX, identifiquei na literatura sergipana alguns poetas que continuaram a escrever sobre a temática do negro, a exemplo: João Silva Franco (o João Sapateiro) e Santo Souza. A produção literária deles, embora mais crítica e mais de acordo com os questionamentos sociais trazidos pelas representações contemporâneas de afro-descendentes, ainda não abarcam uma leitura que discuta as relações étnico – raciais dentro do processo de formulação da identidade afro-brasileira em Sergipe.

Para falarmos de literatura afro-brasileira, de suas articulações de sentido com a literatura brasileira, da maneira como alguns conceitos e determinadas leituras foram ressignificadas neste universo de construções e desconstruções da imagem do afro – brasileiro na sociedade contemporânea, é necessário nomearmos as produções culturais e literárias que buscaram na própria polêmica sobre a existência de uma literatura negra dar visibilidade cultural e política a uma comunidade, até então, supostamente representada por alguns discursos legitimados socialmente. A forma como esses discursos eram “autorizados” pelo poder de uma hegemonia cultural branca, fixada em bases ocidentais, excluía toda e qualquer tentativa de manifestações culturais e literárias que tendessem a buscar na nossa herança africana elementos da história e da memória de afro-descendentes ou ainda a trabalhar a própria representação do negro a partir de um contexto de valorização de suas contribuições à nação brasileira.

 

Da década de 70 do século XX para cá, com a abertura da democracia no Brasil e conseqüentemente com os olhos voltados para um contexto político e cultural mais suscetível a questionamentos, os intelectuais afro -brasileiros buscam no país um espaço de expressão voltado para uma representação de valorização da cultura negra nas discussões sobre cultura, expressões artísticas, comunicação e formação de identidades.

A dinâmica das trocas culturais2 baseadas na negociação dos contatos culturais entre negros, brancos e índios, traduziriam alterações significativas no processo civilizatório ocidental.

 

A proposta da intelectualidade negra era de pensar a articulação da cultura negra, na sua forma de comunicação com a literatur a, a partir da revisão historiográfica do ser negro no Brasil. Estabelecer uma problematização mais intensa da participação do afro-descendente na sociedade brasileira dependia da releitura e da desconstrução das antigas representações destes sujeitos soci ais, construídas sob uma forma de poder hegemônico, que sempre excluiu as expressões minoritárias inviabilizando o reconhecimento social, político e cultural da diferença.

 

Ao assumir a condição de um “enunciador”, o escritor afro -descendente desestabilizou as bases da tradição literária brasileira, acostumada a ver o negro num lugar marcado pela condição inferior, subalterna a ele atribuída. A condição de negro no discurso da enunciação, fez com que o escritor afro -descendente trouxesse para o campo de análise teórica um discurso que problematiza os anseios e angústias de uma coletividade. E que leva o sentimento coletivo a reconhecer a sua total e plena condição de assumir papéis sociais mais definidores do ser negro na sociedade contemporânea, completamente diferente daqueles “naturalizados” pelo discurso colonial.

 

Foi possível abrir, através da proposta diferenciada dos estudos sobre cultura, mais especificamente a dos Estudos Culturais, um espaço de diálogo entre o que já consideramos literatura afro-brasileira e as produções culturais levantadas mais contemporaneamente em estados  distintos do Brasil. Isso reforça a idéia de que a cultura pode e deve ser entendida a partir das tensões criadas pelo conhecimento, nas suas
múltiplas influências ideológicas com o saber cultural em processo, como afirma Florentina da Silva Souza:

Efetivam-se trânsitos e intercâmbios entre os conceitos construídos pelos escritores negros (na verdade pelos movimentos negros) e aqueles gerados pelos estudos e reflexões acadêmicas . Trocas marcadas pelo fato de, mais intensamente a partir dos fins da década de oitenta, crescer o número de afro -descendentes que investem nas pesquisas e estudos sobre cultura, tradição e história afro -brasileira.

 

Sem assumir qualquer posição essenciali sta, acredito que o fato de disputarmos posição de sujeitos e objetos dos estudos introduz uma outra perspectiva de análise da questão racial no universo acadêmico e enriquece a produção de reflexões e estudos sobre a questão racial no 2 SANTIAGO, 1998, p. 16 Brasil. Por outro lado, penso também que a proliferação de entidades e grupos negros no País nas últimas décadas evidentemente que aliada a outros fatores, muito contribuiu para a inserção do tema na agenda acadêmica e nas discussões políticas.

Considero literatura afro-brasileira toda produção cultural voltada para a afirmação de uma identidade negra de inclusão, questionamentos políticos, auto -estima, em constante tensão com o legado cultural da literatura instituída sempre em busca de ampliação e renovação de seu campo de saber através dos diálogos com escritores, intelectuais que pensam suas atividades culturais como forma constante de preservação
cultural afro-brasileira e também de problematização das forças de poder que são exercidas na marcação de políticas que efeti vam a diferença. A releitura das manifestações populares brasileiras se torna fundamental para a revisão do conceito de literário.

 

É neste contexto que o trabalho do intelectual orgânico 4 Severo D’Acelino começa a ser desenvolvido em Sergipe com o propósit o, segundo ele, de dar visibilidade à cultura negra. Seu trabalho concentra ações diversificadas em torno da afro – descendência. Diferente de outros escritores de sua geração no Estado, Severo se projeta para um campo de saber que movimenta na contemporanei dade não só escritas
sobre a temática do negro, mas, sobretudo a discussão pela participação direta no âmbito das políticas que inserem afro-descendentes no campo cultural, político e social brasileiro.

 

Sergipe tem, de acordo com as informações do senso de 2003 realizado pelo IBGE5, um percentual de 68,6 % de afro-descendentes. O município brasileiro com o maior contingente populacional de afro -descendentes é Nossa Senhora das Dores com 3 SOUZA, F. 2005, p. 97-98 4 utilizo o conceito de intelectual orgânico proposto por Gramsci, ou seja, aquele que se coloca a serviço de classes ou empreendimentos para organizar interesses, disputar e obter expansão dos espaços de poder.5

Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), “os indicadores, elaborados principalmente a partir dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de D omicílios realizada em 2003, estão apresentados em tabelas e gráficos, para o Brasil, grandes regiões e unidades da federação e, para alguns aspectos, também para regiões metropolitanas. A publicação apresenta um glossário com termos e conceitos considerad os relevantes”. Os percentuais de 68,6% (pardos), 27,4% (branca), 3,8% (preta) e 0,2 (amarela ou indígena) foram retirados da tabela 11.1 – População total e sua respectiva distribuição percentual, por cor segundo as Grandes Regiões, Unidades da Federação e Regiões Metropolitanas-2003. O percentual de pardos está sendo lido aqui como o de afro -descendentes. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/ . Acesso em: 08 de set. de 2005.

98,7%6, sob o ponto de vista proporcional. As cidades de Monte Alegre, 93,7%, Indiaroba, 89,2% e Pinhão, 89,2% também reúnem uma população significativa neste sentido. No município de Porto da Folha a população “sarará” é interpretada como branca, mesmo apresentando características afro-brasileiras. Gilberto Gil na letra da música Sarará Miolo define o que vem a ser sarará: “como doença de branco, de querer cabelo liso, já tendo cabelo louro, cabelo duro é preciso, que é pra ser você crioulo”. 7 O cabelo duro, na letra da música, é interpretado como uma das marcas identitárias do afro-brasileiro, ao passo que o cabelo liso seria a reprodução de uma marca que não é a sua e, sim aquela
atribuída por um padrão estabelecido de leitura estética e social branca. Na verdade, pelo percentual total de afro-descendentes no estado de Sergipe, percebemos claramente que as cidades do interior influenciam na leitura da capital como predominantemente branca.

Incoerente pensar que Aracaju seja uma capital branca.

 

O percentual de brancos em Sergipe é de 27,4%, de pretos, 3,8% e de cor amarela ou indígena é de 0,2%. Se somarmos os números de pardos, considerados aqui afro -descendentes mais o percentual de pretos, já constatado pelo IBGE, teríamos um total geral de 71,4% de afro -descendentes. Portanto, não deveria haver motivos para que a população de afrodescendentes não seja percebida como um contingente populacional significativo na leitura de afro-descendência no Estado. Acho que a problemática sobre as relações raciais em Sergipe tem suas raízes plantadas principalmente nesta leitura mal feita . Os índices são claros e não deixam dúvidas sobre a caracterização da população quanto à cor. A política governamental do Estado não é uma política voltada para os indicadores sociais desta população. O discurso político em Sergipe fortalece uma identidad e branca, momentânea e que não contribui para que as diferenças raciais sejam seriamente pensadas.6

Este percentual está baseado em Estudos e Pesquisas/ Nota de Estudos 02/203 – Ranking dos cem (100) maiores municípios negros do Brasil.
Fonte: Microdados da Amostra de 10% do Censo Demográfico de 2000. Programação: Luiz Marcelo Carvano. Disponível em: http://www.observatórioafrobrasileiro.org.br . Acesso em: 08 de set. de 2005. 6GIL, Gilberto. Sarará Miolo, Intérprete: Gilberto Gil. Realce. Warner Music, p. 1979. Faixa 7.

Os versos da letra da música de Gilberto Gil ilustram uma definição de “sarará” que está diretamente relacionada com a crítica à rejeição de características que c irculam socialmente como definidoras de um padrão de beleza estética branco. O “sarará” já traz naturalmente a cor dos cabelos loura, o que se aproxima desta construção de padronização criada pela sociedade. Portanto, o “duro” seria enfatizar que o “louro -duro” é a diferença que existe entre o branco louro de cabelo liso e o branco louro de cabelo duro, diferença esta que quando assumida reforça muito mais a identidade afro -brasileira do que uma identidade branca.

 

O afro-descendente em Sergipe incorpora mais a idéia de ser branco do que a idéia de não-branco. Mesmo a população do interior do Estado é levada pelas condições de inferioridade racial, formação de estereótipos e invisibilidade à política de ações afirmativas, a pensar que um tom de pele mais claro, ou o cabelo forçosamente liso, embora com características fenotípicas negras, seja branca.

O discurso da brancura é uma forma de esconder os problemas étnico -raciais, para que eles não venham à tona como uma problematização que possa repercutir no que entendemos como diversidade cultural e identidades múltiplas na formação étnica nacional. As pessoas são levadas a mascarar uma idéia de “branqueamento” para tentar com isso evitar a exclusão.

 

Penso a identidade do afro-descendente em Sergipe como um conceito que opera, como afirma Stuart Hall 8, “sob rasura”. A identidade cultural na contemporaneidade é estudada como identidades. A pluralidade retira do conceito a predominância de uma identidade única no reconhecimento da diferença. O sujeito se percebe socialmente pelo conjunto de identidades que possui e pela não fixidez da construção do conceito de identidade sob uma historicidade em processo. As identidades do afro-descendente na contemporaneidade não podem ser entendidas sem que haja recorrência ao seu passado histórico, como discute Stuart Hall:

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa  correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a
forma como nós podemos representar a nós próprios.”9

 

Não se trata de atribuir culpas pela lentidão do debate racial em Sergipe, apenas pretendo dizer que a representação do afro -descendente deve ser reavaliada e que de uma forma muito clara e objetiva políticas devem ser implementadas para resgatar um pouco da auto-estima e da capacidade de intervenção social do afro – descendente como sujeito que se pensa como tal. Por isso, o nome de Severo D’Acelino e seu trabalho desenvolvido tornam-se importante para o Estado.

8 HALL, 2005, p. 104

9 HALL, op cit, p. 108-109

Severo D’Acelino é o intelectual em Se rgipe que contemporaneamente vem trabalhando com questões relacionadas com a formação de identidades, com o combate aos estereótipos, usados na caracterização da comunidade afro -descendente e denunciando textualmente, seja através de sua poesia ou de artig os, a necessidade de inclusão social desta população, com as atividades direcionadas a projetos de uma
pedagogia de educação voltada para a reflexão e para o conhecimento de conteúdos específicos da cultura negra nos municípios.

Os textos de Severo D’Acelino podem ser lidos como uma produção da literatura afro-brasileira porque seu conteúdo literário discute a problemática do ser negro no Brasil. O sujeito negro é colocado em primeiro plano. Neste sentido, falar do cotidiano desta comunidade acaba sendo o f io condutor que direciona a organização de sua escrita, objetivando uma expressão mais definida, do entender -se negro no nosso país.

As experiências vivenciadas como negro estão traduzidas em cada linha de sua poesia.

Experiências estas que no passado foram menosprezadas por uma literatura instituída que sempre buscou excluir o afro dos afro -brasileiros. Não estamos tratando aqui de uma temática, como já estamos cansados de ouvir. Estamos ampliando nossos conhecimentos, nossos saberes de uma maneira geral p ara tratar de uma literatura afrobrasileira.

 

De uma forma de escrever que procura se despir dos moldes ortodoxos da nossa língua portuguesa. A qualidade literária da literatura afro -brasileira não está nas formas rebuscadas de escritas, nas classificações , conceituações e etc, ela está concentrada indiscutivelmente na experiência poética, artística, cultural e política de saberes que representam o qualificativo afro de afro -descendentes e de afrodescendência
no Brasil.

No início do livro Panáfrica África Iya N’la Severo D’Acelino cria uma certa expectativa em contar uma história de afro -descendência fragmentada pela dispersão de informações que remetam a construção de uma trajetória de ascendência africana.

Mesmo sem a recorrência aos documentos, a históri a merece ser contada e remontada com base nos relatos e tradições da ancestralidade africana que vive, embora modificada na diáspora pela aproximação com a cultura ocidental, para que o passado possa ser reinventado no presente, através de uma representaçã o literária que assume a história da cultura afro-brasileira como um legado de informações que fortalece a identidade afro – brasileira.

 

Na primeira parte do livro, que corresponde ao primeiro manifesto, o sentido de “Panáfrica” é de resistência cultural e p olítica. A resistência da cultura afro -brasileira conseguiu manter as tradições africanas ressignificadas nos rituais do candomblé, nos enredos das escolas de samba e na forma de viver dos quilombolas. “Panáfrica” corresponde à preservação de uma memória p ronta a ser ativada na reconstrução do arquivo cultural e humano, no qual as expectativas do grupo étnico -racial sejam usadas a repercutir uma idéia de cultura voltada para a visibilidade à diferença.

O poema que abre o primeiro manifesto é “Rito de abertu ra, saudação a Exu”. O poeta escolhe iniciar suas escritas com este texto, talvez porque de acordo com a tradição do candomblé no Brasil o Orixá sempre convocado à abertura dos trabalhos é Exu. Metaforicamente, o Orixá tem a função de abrir toda reflexão d e “Panáfrica”, e como mensageiro indicar o caminho que os textos poéticos irão percorrer na sua forma de abordagem da cultura afro-brasileira em Sergipe.

(…)
O que sempre segue

Na frente e quem primeiro
É servido, Saravá
Leva meus rogos e preces
Ao meu Orixá.
Minhas preces em cantos
E prantos do meu povo
Diasporizando, nesta revisitação
A memória ancestral
Para que nosso pranto e cantos
Sejam a partir de agora
Canções de regozijo pela revisitação
Do meu axé10
(…)

 

Recorrer à figura de Exu é comum aos es critores afro-brasileiros para explicar na tradição afro-brasileira a presença do Orixá como metáfora de atividade crítica da interpretação. Leda Maria Martins, em A Cena em Sombras, ao explicar o código da duplicidade que instaura o jogo da aparência e da representação, escolhe Exu como um “operador semântico de alteridade africana na sua interseção cultural nos Novos Mundos”. Exu, na leitura de Leda, “é o princípio dinâmico de comunicação e interpretação que se configura como elemento mediador de sentido” .11

10 D’ACELINO, 2002, p. 74
11 MARTINS, 1995, p. 56-57

Já Henry Louis Gates12 associa o Macaco Significador do discurso a Exu, figura segundo Gates, trapaceira na mitologia ioruba. As figuras trapaceiras são “mediadoras” na leitura do autor. Assim como para a maioria dos escritores afro -brasileiros Exu domina o campo das trapaças, das ambigüidades, da inversão, do jogo discursivo, sempre brincando com as palavras e criando imagens, muitas vezes, irônicas do que repete e inverte.

“Aquele que segue na frente e em primeiro lugar”, assim Exu é definido por D’Acelino. O que segue primeiro é, em consonância com o discurso dos autores citados, o dono da notícia, da comunicação direta do ato de comunicar na representação do significado de “Panáfrica”.

A poética de Severo D’Acelino é o esboço de uma literatura afro -brasileira escrita para ser conhecida como o início de uma “caligrafia” que pensa o afro – descendente em Sergipe num contexto histórico de representações que enfatizam a necessidade de reconhecimento e visibilidade deste grupo étnico -racial. Tradição africana, cultura popular brasileira, identidade, religiosidade, representações e diferenças
étnicas, historicidade, intervenções culturais e políticas são alguns dos aspectos que podemos levantar através de sua abordagem literária como forma de problematizar a participação do sergipano, mais especificamente a do afro -sergipano na vida cultural e política de seu Estado.

É neste contexto do debate político e étnico -racial contemporâneo que analiso a atuação direta do intelectual Severo D’Acelino em Sergipe. Destaco seu trabalho como fundamental para pensarmos o diálogo de sua produção cultural com a de artistas e outros intelectuais da literatura afro-brasileira. Acredito também que a diversidade do trabalho de Severo tenha impacto em todos os setores da opinião pu blica, gerando

polêmica com o poder hegemônico sergipano. Na efetivação de seu discurso, ele se vale da condição e do papel de intelectual, para criar estratégias de intervenção na política 12 GATES, 1992, p. 206-207 cultural e, na estrutura educacional, buscando uma representação do afro-descendente mais emancipatória, sob o ponto de vista da reconstrução da história e da memória do afro-descendente em Sergipe em consonância com as leituras da literatura contemporânea.

 

*Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos – Universidade Federal da Bahia
Centro de Estudos Afro-Orientais

 

REFERÊNCIAS
BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
D’ACELINO, Severo. Panáfrica África Iya N’La. Aracaju: MemoriAfro, 2002.
GATES Jr. Henry Louis. A escuridão do escuro: uma crítica do signo e o Macaco
significador. In: HOLLAND, Heloísa Buarque. (Org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 205-216.
GILROY, Paul. Atlântico Negro. São Paulo: Editor 34, 2001.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura . Trad. Carlos Nelson Coutinho. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. SOVIK. Liv (Org.). [Trad.
Adelaine La Guardia Resende…[et al]. Belo horizonte: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
_______. &WOODWORD, Kathryn. Identidades e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. SILVA. Yomaz Tadeu da (Org. & Trad). 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
LIMA, Jackson da Silva. História da literatura sergipana. Aracaju: FUNDESC, 1986.v.2.
_______. (org.). Os Palmares Zumbi & Outros textos sobre escravidão. Aracaju:
Sociedade Editorial de Sergipe, 1995.
MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras.São Paulo: Perspectiva, 1995.
SANTIAGO, Silviano. Democratização no Brasil – 1979-1981 (Cultura versus Arte). In:
ANTELO, Raul et al (Org). Declínio da arte, ascensão da cultura . Florianópolis: Letras
Contemporâneas/ ABRALIC, 1998. p. 1 -24.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica Cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU.
Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

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