A indústria fotográfica pode ser racista no Brasil? Partindo da matéria “Questão de pele“, de Lorna Roth (publicada na ZUM #10), a jornalista Suzana Velasco entrevistou fotógrafos, cineastas, laboratoristas e pesquisadores como Eustáquio Neves, Rogério Reis, Fernando Meirelles, Walter Carvalho, Lilia Schwarcz e outros para traçar um breve panorama da recepção por aqui dos padrões da indústria fotográfica estrangeira – como os cartões Shirley, produzidos e distribuídos pela Kodak a partir dos anos 1940, que eram usados pelos laboratórios na padronização de cores e tons de pele de impressões fotográficas.
por Lorna Roth no Revista Zum
Quando as impressoras automáticas chegaram ao Brasil, na década de 1970, os laboratórios da Kodak no país receberam cartões com a imagem de mulheres brancas ao lado de escalas de cinza e de cor, usados para padronizar os tons de pele das impressões fotográficas. Produzidos desde os anos 1940 nos Estados Unidos, os cartões Shirley só incluíram negras e asiáticas – eram sempre mulheres, como as Color Girls da televisão e as China Girls do cinema – na segunda metade dos anos 1990, quando os americanos negros já eram um público consumidor que podia pressionar por representação. No Brasil dependente das técnicas do exterior, os padrões delimitados pela Kodak não passaram despercebidos. Enquanto os profissionais sempre criaram técnicas para driblar as limitações dos filmes e das máquinas automáticas de fotoprocessamento, os próprios laboratoristas da empresa no Brasil alteravam as cores na impressão – não em função da população negra, mas sobretudo devido à luz tropical.
O fotógrafo Eustáquio Neves, que desde o início da carreira tematiza sua descendência africana, vendeu o carro no fim dos anos 1980 para montar um laboratório colorido. Só então começou a ficar satisfeito com a revelação de suas fotos. “Os parâmetros não foram feitos para a pele escura, mas para a tez caucasiana. Este sempre foi um grande problema. Fotografar uma negra com vestido de casamento branco, por exemplo, era muito difícil. Acabava-se clareando o negro, em vez de retratá-lo. Eu achava que não sabia fotografar, até perceber que o padrão não foi criado para a pele negra”, diz.
Assim como Neves, fotógrafos profissionais nunca puderam depender apenas da qualidade dos filmes para fotografar, valendo-se de técnicas de iluminação e revelação para encontrar os tons adequados a sua estética.
“O profissional, eu me arrisco dizer, não obedece ao cartão Shirley. A autoria nunca passa pelo padrão”, diz o cineasta e fotógrafo Walter Carvalho. “O fotógrafo é incapaz de dominar a realidade, até porque ver é sempre uma intepretação. Além disso, a obscuridade é um fato também, ela existe. Sempre haverá dificuldade de registrar altas e baixas luzes, ou seja, brancos e pretos. Se eu fotografo o mar, superexponho o céu em relação à Terra, sempre. Esse problema permanecerá, seja na paisagem em Nova York ou no sertão da Paraíba. Mesmo os fotógrafos de digital vão conviver sempre com essa questão”.
No Brasil, os filmes que privilegiavam os tons de pele mais claros representavam ainda outro problema de saída: eram mais adequadas ao Hemisfério Norte, e não à luz tropical. Supervisor de controle de qualidade da Kodak no Brasil, Carlos Nascimento conta que os quatro laboratórios da empresa no país faziam um ajuste eletrônico nas impressoras, já que os filmes fotográficos e o método de revelação não podiam ser modificados: “O padrão vindo dos Estados Unidos era frio, tendia à cor ciano. Nós alterávamos esse ponto de partida das impressoras, que eram totalmente manuais, para que a impressão valorizasse mais a luz brasileira. No Norte do país, por exemplo, o magenta sempre era reforçado para retratar o índio. A cor tinha que ser mais quente, mais saturada. Sempre driblamos o padrão, mas a Kodak sabia. Os quatro laboratórios faziam isso, e eu continuei adaptando a impressão quando saí da empresa.”
A temperatura de cor mais quente foi favorecida com a entrada dos filmes Fuji no mercado brasileiro, pois eles privilegiavam o magenta, enquanto os da Kodak tendiam para o azul, clareando os tons. “Com o advento da cor, todos os jornais largaram a Kodak e passaram a usar Fuji. Os filmes combinavam mais com nossa paisagem”, conta o fotógrafo Rogério Reis, que foi fotojornalista em diferentes meios e editor de fotografia do Jornal do Brasil na década de 1990.
Nos Estados Unidos, não foram os negros os primeiros a provocar mudanças nas emulsões fotográficas Kodak, e sim o comércio. Nos anos 1960, fabricantes de chocolate e de móveis reclamaram que os tons de marrom de seus produtos não eram bem representados na publicidade, explica Lorna Roth no artigo “Questão de pele”, publicado na ZUM #10.
Para o fotógrafo e antropólogo Milton Guran, mais que racismo, o padrão de tom de pele branco atendia ao público consumidor da Kodak, que teve de se adaptar à medida que negros passaram a consumir fotografia. “Não há dúvida de que a sociedade americana é etnocêntrica e racista. Mas os cartões Shirley tiveram uma razão mercadológica, pois o que interessava para a Kodak era ganhar dinheiro”, diz Guran. “Os Estados Unidos depois passaram por uma mudança radical com relação à inclusão dos afrodescendentes no mercado da moda e da publicidade, algo que está acontecendo debaixo dos nossos olhos aqui, mas que nos Estados Unidos aconteceu há 30 anos. Hoje poderia haver uma pressão no Brasil por outros cartões Shirley, mas a ascensão dos negros já se dá em meio à fotografia digital, que avançou nessa questão técnica.”
Se o Brasil não viu surgir a discussão sobre a influência cultural especificamente na química das emulsões, o uso de técnicas fotográficas tem implicações nas formas de representação na indústria visual. O óleo usado nos atores negros do curta-metragem Palace II, de Fernando Meirelles e Kátia Lund, por exemplo, foi criticado por estetizar os personagens. Meirelles conta que o óleo serviu como alternativa para refletir a luz, em vez de criar marcas de iluminação que tirassem a naturalidade de atores sem experiência: “Funcionou do ponto de vista da fotografia. Porém, apesar de o filme ter ganho o Festival de Brasília,
fomos vaiados ao receber o prêmio. A acusação era que tratava-se de um filme maneirista e publicitário para abordar um tema tão urgente, e a questão era justamente o brilho das peles.”
Fernando Meirelles e Kátia Lund, “Palace II” (curta), 2001
O curta serviu de teste de fotografia para o elenco de Cidade de Deus, mas a técnica foi usada com mais parcimônia no longa-metragem. O diretor de fotografia do filme, César Charlone, conta que teve a ideia ao ver, numa tela de Di Cavalcanti, uma mulher negra com a pele suada refletindo o entorno. Para Charlone, há mistificação em torno da ideia de racismo por trás da tecnologia. “O filme fotográfico reflete o branco como branco e o preto como preto. Tem lugar para todas as peles na escala de cinza. Acho que essa questão é um mito”, afirma.
Para a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, não há neutralidade na técnica, que é sempre desenvolvida em encontro com elementos da cultura. Assim como o Brasil dependia de filmes fotográficos desenvolvidos no exterior, a história de representação dos brasileiros também começou pelo olhar estrangeiro, preocupado com a individuação do homem branco, o colonizador. Autora de livros sobre a questão racial no Brasil, Schwarcz ressalta que na obra dos grandes pintores holandeses e franceses que retrataram o Brasil entre os séculos XVII e XIX, como Frans Post e Nicolas-Antoine Taunay, o negro era sempre um borrão.
“Em suas telas, os brancos são discerníveis, enquanto os negros não são identificados. Mesmo Taunay, que é um craque da miniatura, não tem a mesma aptidão ao retratar os escravos. É como se eles não precisassem ser treinados para o marrom. Não é que não era possível, não era desejável”, afirma Lilia, citando a tela Mercado de escravos em Pernambuco, de Zacharias Wagener (1641), como exemplar dessa diferença técnica.
Somente com o desejo de retratar o negro há um desenvolvimento da técnica do marrom, evidente no pintor Modesto Brocos, que em Engenho de mandioca (1892) pinta diferentes cores de pele negra reunidas num espaço marrom, de madeira. Em Redenção de Cam (1895), a avó negra louva o branqueamento da família em duas gerações, com o nascimento do neto de pele clara. Brocos produz num momento em que a fotografia de negros praticamente desaparecera no Brasil, para voltar apenas no século XX. “Não era bom ao Império representar o Brasil a partir da escravidão”, diz Lilia.
Mais de um século depois, a representatividade do olhar negro sobre si mesmo ainda é muito baixa. Para Lilia, a presença de mais fotógrafos negros pode aos poucos mostrar uma outra história da arte, na medida em que ele vê mundos que o branco não vê. Eustáquio Neves é um exemplo disso. Grande parte de sua obra lida com a própria herança africana e com a memória afrodescendente no Brasil. Em A boa aparência, que até 7 de agosto integra a exposição Arquivo Ex Machina – Identidade e Conflito na América Latina, no Itaú Cultural de São Paulo, ele une imagens de negros a textos do período colonial, em que a “boa aparência” é usada para qualificar escravos, ao lado de textos contemporâneos de ofertas de emprego, que exigem “boa aparência”.
“Quero pensar sobre o padrão que usamos para classificar os outros. Fica claro que a boa aparência de um escravo não serve para o emprego dos classificados”, reflete. “A fotografia veio como uma paixão para mim, e descobri que com ela podia discutir questões minhas, das minhas origens. O negro ainda é muito estereotipado, mas hoje pelo menos discutimos mais a fotografia conceitualmente. Isso já é um avanço.”///
Suzana Velasco é jornalista. Trabalhou por 12 anos no jornal O Globo. É autora do livro A imigração na União Europeia: Uma leitura crítica a partir do nexo entre securitização, cidadania e identidade transnacional (EDUEPB, 2014).