Supremo dos EUA enfrenta o primeiro teste à lei do aborto

A mais alta instância judicial norte-americana ouve esta quarta-feira os argumentos num caso sobre uma lei do Louisiana que poderá ser o princípio do fim do direito à interrupção voluntária da gravidez nos EUA. Decisão é esperada em finais de junho e poderá marcar campanha para as presidenciais.

Por Susana Salvador, do Diário de Notícias

Manifestantes a favor e contra o aborto durante uma marcha em Washington, a 24 de janeiro. (© OLIVIER DOULIERY / AFP)

É o primeiro teste ao direito ao aborto nos EUA desde que o presidente norte-americano, Donald Trump, nomeou dois novos juízes para o Supremo Tribunal. A mais alta instância judicial dos EUA ouve esta quarta-feira os argumentos em relação a uma lei no Louisiana, aprovada em 2014, que obriga os médicos que realizam interrupções voluntárias da gravidez em clínicas especializadas a ter privilégios para poder atuar num hospital num raio de 50 quilómetros. Será o princípio do fim da decisão Roe v. Wade de 1973?

Em 2016, antes de Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh serem nomeados por Trump e fazerem pender o Supremo Tribunal mais para a direita, uma lei idêntica que tinha sido aprovada no Texas foi rejeitada, graças ao voto decisivo do juiz conservador Anthony Kennedy (que era defensor do direito ao aborto e entretanto se reformou). Em finais de junho, quando é aguardada uma decisão final, os norte-americanos vão descobrir que hipóteses existem de revogar o direito ao aborto.

Caso a lei do Louisiana, que tem o apoio da Administração Trump, receba luz verde do Supremo, é possível que duas das três clínicas que atualmente realizam abortos neste estado tenham que fechar, sendo que só um médico cumpre os requisitos exigidos (e este já terá dito que não continuará sozinho).

Em fevereiro, o Supremo suspendeu temporariamente a entrada em vigor da lei no Louisiana (que já tinha sido bloqueada por um juiz estadual em 2016, mas tido novamente luz verde em recurso, em 2018).

O presidente do Supremo, o conservador John Roberts, votou então ao lado dos quatro juízes liberais, mas nada garante que siga pelo mesmo caminho na decisão final. Foi um voto raro contra restringir o aborto deste juiz em mais de 13 anos no cargo (no caso do Texas, tinha votado pela aplicação da lei), com a agência Associated Press a dizer que pode refletir a sua preocupação com o facto de o tribunal poder ser visto como uma instituição partidária e o seu respeito pelas decisões anteriores do tribunal, mesmo aquelas de que discorda.

Apesar de o aborto ser legal nos 50 estados norte-americanos desde a histórica decisão de 1973, o acesso das mulheres a este procedimento médico diverge de estado para estado, sendo que cada um deles pode regulá-lo ou limitá-lo. Sempre desde que não coloquem um “fardo indevido” no direito ao aborto de uma mulher, consoante outra decisão do Supremo de 1992, que concluiu também que a gravidez podia ser interrompida desde que o feto não fosse viável, normalmente antes das 24 semanas.

Desde 2010, vários estados aprovaram leis que restringem a interrupção da gravidez, incluindo medidas que o proíbem a partir das seis semanas (quando muitas mulheres ainda nem sabem que estão grávidas), mas estas têm esbarrado nos tribunais.

Trump, que dizia ser a favor de dar a escolha às mulheres apesar de odiar a ideia do aborto, tornou-se num defensor da vida (as exceções para a interrupção da gravidez são no caso de violação, incesto e para proteger a vida das mães). Nos comícios não hesita em usar a imagem de que os bebés são “arrancados” do ventre das mulheres durante o procedimento e lembra várias vezes que nomeou dois juízes pró-vida para o Supremo. “Os bebés que ainda não nasceram nunca tiveram um defensor tão forte na Casa Branca”, disse Trump em janeiro, num comício em Washington.

A decisão do Supremo em relação à lei do Louisiana deverá surgir a quatro meses das presidenciais, onde Trump procura a reeleição, marcando o debate e a campanha independentemente do resultado. Todos os candidatos democratas são a favor do direito ao aborto, incluindo o ex-vice-presidente Joe Biden, um católico que no passado chegou a admitir que a Roe v. Wade tinha ido longe demais.

Caso o Supremo decida dar luz verde à lei do Louisiana, já há vários outros processos em curso que podem levar no final à revogação total da decisão de Roe v. Wade e muitos estados já estão a aprovar legislação que tornaria o aborto imediatamente ilegal nessa circunstância – o Louisiana é um desses casos.

Roe v. Wade

Em janeiro de 1973, o Supremo Tribunal decidiu numa votação de 7 contra 2 que o direito a um aborto seguro e legal é um direito constitucional. A decisão que liberalizou a interrupção voluntária da gravidez teve início contudo em 1969, quando “Jane Roe” – um pseudónimo usado para manter o anonimato de Norma McCorvey, que nunca assistiu a qualquer sessão do julgamento e só se identificou no final – ficou grávida do terceiro filho.

Ela própria filha indesejada, McCorvey deixou a escola no nono ano e foi violada repetidamente por um familiar, antes de fugir. Casou aos 16, divorciou-se e engravidou três vezes de três homens diferentes, tendo o primeiro filho acabado por ficar ao cuidado da mãe e os outros dois (apesar de querer abortar acabou por dar à luz) sido entregues para adoção, por causa das dificuldades financeiras com que vivia. Mais tarde assumiu-se como lésbica.

No Texas, onde vivia, o aborto era ilegal exceto no caso de a gravidez pôr em risco a vida da mulher e ela apresentou queixa contra o procurador local, Henry Wade, alegando que a lei era inconstitucional. Estava então totalmente envolvida na luta pelo direito ao aborto, mas mais tarde tornou-se numa ativista anti-aborto, após se converter ao catolicismo.

Depois de uma primeira decisão a favor de Roe nos tribunais estaduais, o Texas apelou diretamente para o Supremo Tribunal, que concordou em ouvir o caso que desde então divide os norte-americanos. Norma McCorvey morreu em 2017, aos 69 anos.

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