Uma face da transfobia chamada solidão

“Uma vida só pertence à pessoa que a vive. Eis a solidão em que estamos encerrados, como em um quarto, como em um crânio, onde nossos pensamentos, por mais que viajem, sempre nos trazem de volta a nós mesmos.” A frase é de Paul Auster, escritor estadunidense. De fato, a solidão é um afeto fundamental para o funcionamento positivo da mente humana, haja vista ela nos ajudar a construir ações em benefício da sociedade. Agora, por exemplo, me encontro em completa solidão, escrevendo esse texto.

Contudo, a solidão pode se tornar fonte de intenso sofrimento psíquico, quando é instituída pela sociedade: exatamente nesse ponto estão as travestis e mulheres transexuais, haja vista, tendo seus corpos objetificados e hipersexualizados, vivenciam uma das modalidades mais sutis da violência – a determinação social compulsória de que elas não merecem vivenciar relacionamentos amorosos.

Há alguém disposto a assumir um relacionamento amoroso com uma travesti? Elas podem ser, de fato, amadas? Essas são perguntas feitas pelas travestis e mulheres transexuais participantes da tese de doutorado, Te desafio a me amar: desejo, afeto e a coragem da verdade na experiência dos homens que assumem relacionamentos com as travestis e mulheres trans, publicada em 2017, por Marília dos Santos Amaral. Ante tais perguntas, percebemos que as travestis e mulheres transexuais são consideradas como corpos socialmente ininteligíveis, e, portanto, não servem para experimentar uma relação amorosa. Nesse cenário, a solidão equivale a morte: mesmo em vida, pessoas trans e travestis são diariamente impossibilitadas de vivenciar o amor, na visão de Sigmund Freud (1856-1939), pulsão de vida, conforme ele esclareceu no seu texto As pulsões e seus destinos, publicado em 1915. Ora, criar barreiras para a existência de uma pulsão promotora de autoestima, possivelmente resultará em morte, mas, não necessariamente em morte física. Estamos falando de morte social, um processo de negação da existência e da importância de certas vidas, as quais sequer são consideradas como tais. Nessa perspectiva, pessoas T enfrentam um verdadeiro cenário de guerra para viver algo comum, mas destinado socialmente apenas às pessoas cis: o amor.

A transfobia se manifesta também na solidão das travestis e mulheres transexuais: são vistas com piedade, como diversão, como objetos para satisfação genital. Nesses termos, fica a reflexão para homens cisgêneros e heterossexuais que sentem atração afetivo-sexual por pessoas trans e travestis, a reflexão de que amá-las é uma responsabilidade, a qual jamais pode ser encarada sob uma perspectiva salvacionista.

Armando Januário dos Santos é Mestrando em Psicologia pela UFBA. Psicólogo graduado pela UNEB. Pós-graduado em Psicanálise; em Gênero e Sexualidade; e em Literatura. Graduado em Letras com Inglês. Autor do livro Por que a norma? Identidades Trans, Política e Psicanálise. e-mail: [email protected]  | Instagram: @januario.psicologo

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