É hora de RACIALIZAR o debate sobre o sistema prisional no Brasil

Não que eu tivesse dúvidas antes, mas tomei coragem de arriscar este texto para dialogar um pouco do quanto vejo com descrença e desânimo muito do que tem sido dito, analisado, escrito e debatido sobre a situação do sistema penitenciário no Brasil. E uma das razões pelas quais essas reflexões falham, ou estão fadadas ao fracasso, andando em círculos, é a indiferença quanto a força do racismo neste sistema, ou a não racialização da questão nas conversas sobre possíveis soluções e apontamento de problemas. É um erro pensar uma coisa, fechando os olhos para a outra. Negro e crime, no Brasil especificamente, é uma construção absolutamente determinante. Não estou invalidando outras análises, estou dizendo é que nada da situação que temos hoje, é verdadeiramente compreendida, ignorando o rastro que nos trouxe até aqui. E este rastro é racial. O Código Criminal do Império, de 1830, é emblemático no seu art. 60 quanto ao lugar do sujeito do negro, ao dizer que “se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja capital ou de galés, será CONDENADO NA DE AÇOITES, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a TRAZÊ-LO COM UM FERRO PELO TEMPO E MANEIRA QUE O JUIZ DESIGNAR”. Daí em diante, o que temos é um agravamento sistemático das penas e formas de punição, sempre intencionando subjugar o corpo negro e garantir a “segurança” da sociedade liberal, branca.

Por Ronilso Pacheco da Silva, para o Portal Geledés 

Da mesma maneira, o que temos com a Lei do Ventre Livre, de 1871, é a legitimação do privilégio que o governo dá aos senhores escravizadores de se desfazerem do fardo de se responsabilizarem pelos filhos das escravizadas. No texto do artigo, a dissimulação típica da elite brasileira se manifestava na afirmação de que “os filhos de mulher escrava [escravizada] que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados livre”. O que realmente acontecia era o aumento do contingente de crianças abandonadas, formação de uma geração de jovens que não conheceram os pais ou deles foram arrancados sem conhecer, o início da desventura da sorte e da sobrevivência no jogo da vida nas ruas, quando não o aumento da mortalidade infantil.

A isto vem se somar a Abolição da Escravatura, de 1888. Ao contrário do que querem sempre transformar num ato heroico e solidário da princesa Isabel, o que a Abolição fez foi consolidar a destruição de negros e negras na sociedade brasileira, na medida em que joga de vez essa população entregue à própria sorte. Não que negros e negras estivessem mais “seguros” na casa grande, mas o projeto racista de “libertação” dos escravizados foi a libertação do Império de um peso, uma vez que não havia qualquer política de acolhimento, cuidado, preparação, reparação e tratamento da dignidade dessas pessoas. Para o projeto em curso, eles eram os sujeitos perfeitos para personificar o mal, a ameaça, a violência, a justificativa para o aprimoramento dos aparatos de segurança e repressão.

Juntas, a abolição da escravatura, a Lei do Sexagenário e a do Ventre Livre são apenas algumas das principais fontes fornecedoras de “inimigos” para o Estado e para a sociedade, que justifica o endurecimento da lei para o corpo negro com o Código Penal de 1890 (não por acaso, apenas dois anos após a abolição), que criminalizava, por exemplo, a capoeira. Pensemos por exemplo na criação das chamadas Colônias Correcionais, nossos “pré-presídios”, em 1894. E quem estaria lá? A Lei n° 947, de janeiro de 1902 diz que eram os “MENDIGOS VÁLIDOS, VAGABUNDOS E VADIOS, CAPOEIRAS E ÉBRIOS, JOGADORES E MENORES VICIOSOS ENCONTRADOS E JULGADOS”. Quantos homens brancos, mulheres brancas, da nossa novíssima sociedade republicana você é capaz de visualizar encaixados neste perfil neste momento? Falar destas Colônias Correcionais é importante também porque é daqui que surge, por exemplo, a mais conhecida delas, localizada em Ilha Grande, no Rio de Janeiro.

É curioso que toda história sobre o famoso antigo presídio de Ilha Grande (mais especificamente o Instituto Penal Cândido Mendes), desativado em 1994, começa a ser contada a partir do surgimento da Falange Vermelha, a famosa junção entre presos políticos da ditadura militar e presos comuns (na sua esmagadora maioria, pretos). Como se sabe, a Falange Vermelha é “mãe” do Comando Vermelho. Mas é preciso que se diga que, antes que presos brancos, letrados, de classe média, e carregados de ideologia política fossem levados para a famosa penitenciária, sua construção é para receber (punir, vigiar, controlar) homens negros. O PRESÍDIO DE ILHA GRANDE É CONSTRUÍDO COMO FRUTO DA LÓGICA RACISTA, INSTITUIÇÃO TOTAL PARA DAR CONTA DO EXCEDENTE NEGRO LIVRE, “VIOLENTO” E “AMEAÇADOR”. Portanto, antes da ditadura, em 1964 (e antes mesmo da Revolução Constitucionalista de 32, que prendeu ali o jornalista Orígenes Lessa, e a ditadura de Vargas, que colocou ali o escritor Graciliano Ramos em 1932), em Ilha Grande o grito que ecoava de dor e açoite era o corpo preto.

O fim da ditadura permitiu a anistia dos presos políticos, que, na medida do possível, retomaram a vida (com as inegáveis dificuldades que se deve imaginar, de quem experimentou a crueldade da tortura). Eram estudantes, intelectuais, artistas, políticos, músicos, etc. Os presos comuns (que ali ficaram até a desativação definitiva da unidade), negros e pobres, “moradores antigos” dos porões do horror e do açoite no chamado “caldeirão do diabo”, o poder e a possibilidade de enriquecimento com a formação de um “comando”, gestando o chamado “crime organizado”, pareciam ser as únicas oportunidades e desejos. E, já ali dentro mesmo, esse status era o horizonte que valeria ser mantido a ferro e fogo, imposto pela violência e pelo medo. Ilha Grande também “formou” mais de duas gerações de policiais e agentes penitenciários forjados na doutrinação pela violência e a prática da tortura, herdeiras da “correção” do negro pelas chibatadas, o ferro quente e os cortes com facas pelo corpo.

Isto não foi um dilema naquele momento, no “princípio”, e continua não sendo um problema agora. Para além dos muros dos presídios, a população preta e pobre só conhece a repressão e a violência e a construção de narrativas à seu respeito. Tendo o Rio de Janeiro como exemplo, desde fins do século XIX, início do XX de Barata Ribeiro a Pereira Passos, até hoje, tudo o que se tem sistematicamente são remoções de famílias, corpos desalojados dos lugares considerados importantes e que deveriam ser higienizados. As favelas que foram se formando ao redor do Centro da cidade embranquecida e elitizada, e que tem o aparato policial ao seu lado, também acabou por sedimentar uma população cruelmente reprimida, empurrada para os recantos periféricos, intimidada, tolhida de todas as oportunidades de acesso a privilégios que foram criados sob a lógica de que ela não deveria desejar. E a política de governo sobre drogas ilícitas, que segue fundamentada na repressão, encarceramento e combate bélico, não faz nada além de manter a mesma fracassada linha de raciocínio da forma racista de funcionar que concentra a captura, controle e vigilância nestes mesmos lugares.

O que estou tentando dizer é que não vamos avançar sem essa autocrítica. Não há, sem este reconhecimento, outra solução a não ser a construção de mais presídios. Obviamente. Porque nossa política social segregadora racista continua gerando contingentes em massa de criminalizáveis. É nítido que apenas reconhecer hoje que o núcleo dessa barbárie em evidência é racial não resolve o problema amanhã. Sim. Mas dói ainda mais saber que quando tudo isso deixar de ser notícia, nós vamos continuar confiando nesta alternativa atual e, o que é pior, ignorando a trágica história que nos trouxe até aqui massacrando a população negra. Aqui eu ilustro com a linda reflexão da americana Alice Walker, em um dos seus artigos mais brilhantes (À Procura do Jardim de nossas mães), de 1974, em que ela, se referindo às mulheres negras, diz: “Como se pode manter viva a criatividade de uma mulher negra, se ano após ano, século após século, quando durante a maior parte dos anos, que os negros vivem na América, era um crime punível para uma pessoa negra ler e escrever?”. Como esperamos que se possa levar a sério as reflexões, artigos, análises, reportagens, notas oficiais, entrevista coletiva do governo sobre, e as propostas de soluções para, a chamada “crise” do sistema prisional brasileiro, se estamos recusando insistentemente reconhecer que o arcabouço dessa máquina de matar (além de gerar poder, privilégio e, é claro, lucro) é a negação da dimensão racial de tudo isso?

Vamos continuar pagando o preço da falta de uma política racial séria, com reparações e real dimensão das questões social, territorial, educacional, econômica e psicológicas do estrago causado pelos séculos de escravidão, política colonial e desigualdade na formação do Brasil. No sistema penitenciário brasileiro estão corpos negros. São negros que estão morrendo e matando, são negros que tem as cabeças decapitadas por outras mãos negras. Todas as vezes que vermos alguns corpos brancos na barbárie desumana do caos penitenciário, lembremos que estamos vendo corpos brancos em uma instituição criada para corpos negros. E é por isso que o argumento de que lá “também” há brancos (e, assim, a questão racial estaria equivocada) não é apenas frágil, é um desserviço. As raízes de nossa violenta mazela são evidentes. Mas somos racistas

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