Machado de Assis é o maior escritor latino-americano

Qualquer semelhança não é mera coincidência. A morte do amigo desencadeia a obsessão do personagem para desvendar um “crime que jura estar consumado”: o adultério de sua mulher com o falecido.

Parece um “crime consumado” nos arredores da rua Matacavalos, cenário descrito por Machado de Assis em seu clássico Dom Casmurro. É, na verdade, a base do livro A Origem do Mundo, do chileno Jorge Edwards, fã declarado do autor brasileiro. O livro chega ao Brasil 18 anos após o seu lançamento. “Machado de Assis é o maior escritor latino-americano e foi meu grande mestre”, disse o autor a CartaCapital, por telefone, da embaixada chilena em Paris, posto que deixa em março para assumir a representação diplomática de seu país em Madri. “Sou um escritor chileno, mas que tem em sua formação um professor brasileiro. Houve outros mestres também, mas para o meu gosto particular o melhor escritor latino-americano de todos os tempos é Machado de Assis.”

Jorge Edwards (Foto: Imagem retirada do site O Globo)

No livro recém-lançado pela Cosac Naify, o ciúme, a desconfiança e a insegurança perturbam o personagem principal, Patricio Illanes. A suspeita de uma traição é o ponto de quebra do cotidiano: a rotina do personagem dá espaço a uma narrativa irônica e de reflexões agudas que o levam à descoberta do desconhecimento em relação ao outro.

A Origem do Mundo, que traz como pano de fundo o exílio de militantes de esquerda em Paris para tratar de dramas pessoais, tem clara influência da obra de Machado de Assis, autorestudado a fundo pelo diplomata e escritor chileno. Esta aproximação fica clara em certas passagens, como quando descreve a mulher.

Silvia tinha o costume de rir das coisas de Felipe, de falar mal dele, mas quando ele chegava a um lugar ela se animava, se alegrava, mudava de comportamento de forma visível. Os outros talvez não percebessem, mas eu via muito bem, mais que bem, e me parecia que a prova era perturbadora, escandalosa. Silvia!, eu exclamava por dentro, e observava com o rabo dos olhos, mal dissimulando, com emoções que um bom leitor teria podido ler na minha cara, o entusiasmo com que ela beijava o rosto dele ao cumprimentá-lo, repetidas vezes, terminando por beijá-lo perto da boca. Perto demais, entusiasmo demais, repisava eu, mas não dizia uma única palavra e pronto, porque eu sou, ou era, naquele tempo, uma pessoa de excelente saúde (tenho medo de que a saúde esteja se transformando para mim em enfermidade), pensava em qualquer outra coisa.

A Origem do Mundo
A Origem do Mundo (Foto: Reprodução/ Editora Cosacnaify)

Permeia a obra um traço de melancolia a evocar um futuro não concretizado. É como se o passado político desses personagens, explica o autor, desse lugar à desilusão e a uma vivência mais pessoal. “Sempre que há uma história revolucionária, há uma desilusão que acaba por provocar uma introspecção, um estudo da alma profundo”, explica. “Essa é uma busca individual, não é uma metáfora política. Esses personagens são vítimas da ditadura, mas no momento em que o mundo começa a mudar eles descobrem sua própria realidade. Deixam de ser atores políticos para viver uma vida interior, erótica, amorosa, de ciúmes, recuperando a subjetividade.”

A Origem do Mundo, ele lembra, foi escrito durante as férias quando trabalhava como embaixador na Unesco e resolveu fazer algo totalmente diferente do cotidiano de reuniões intermináveis e análise de documentos e relatórios. “Levei comigo discos do pianista Sergei Rachmaninov e cartas do filósofo latino Sêneca. Me diverti muito com o livro, eu ria escrevendo”, lembra. “Quis também ser um pouco antissolene, distinto do que sinto ser a minha geração, que em cada página faz uma teoria da história, do mundo, algo um tanto pedante.”

Amigo no Rio. A raiz do fanatismo de Edwards por Machado tem origem em um antigo romance do autor com o Brasil ainda na juventude. Amigo de Rubem Braga, ele viajava com frequência a São Paulo e ao Rio, onde se hospedava na casa do cronista na Rua Prudente de Morais, em Ipanema. Foi o amigo quem lhe apresentou Machado de Assis, sua grande inspiração para levar o oficio de escritor paralelamente à carreira diplomática. “Ele me falou de Machado, e depois encontrei em seu humor e tom irônico algo muito parecido com a minha maneira de escrever. Machado de Assis me formou.”

Embaixador de Salvador Allende em Cuba, Edwards teve sua passagem pela ilha marcada por uma acalorada discussão com Fidel Castro, o que lhe rendeu a sua saída de Havana e o livro Persona Non Grata, sobre a sua experiência na ilha. Com o golpe do general Augusto Pinochet, Edwards foi expulso do corpo diplomático chileno em 1973. “Quando Pinochet me expulsou, celebrei com champanhe porque pude me meter em uma jornada completa no mundo da literatura”, conta rindo. “Sempre escrevi porque sou madrugador. Me levanto muito cedo, escrevo antes de começar o trabalho burocrático no escritório. É bastante difícil fazê-lo, mas eu consegui porque sou bastante teimoso.”

Depois do exílio na Espanha, Edwards voltou ao Chile em 1978, quando fundou o Comitê de Defesa da Liberdade de Expressão. O intervalo na carreira como embaixador terminou com a chegada de Sebastián Piñera ao poder, em 2010, quando foi convidado a assumir o posto na capital francesa. Ao longo dos 40 anos em que esteve afastado das negociações diplomáticas, o escritor nascido em 1931 deu continuidade à produção literária, com os livros Los Convidados de Piedra (1978), El Museo de Cera (1981), La Mujer Imaginaria (1985), El Anfitrión (1987), Fantasmas de Carne y Hueso (1992), El Sueño de la Historia (2000), El Inútil de la Familia(2004) e La Casa de Dostoievsky (2008). Escreveu, ainda, Adiós Poeta (1990), em memória ao amigo Pablo Neruda, além dos volumes de ensaios Desde la Cola del Dragón (1977), Mito, Historia y Novela (1980) e El Whisky de Los Poetas (1994).

Seu próximo romance, Retrato de María, será lançado no segundo semestre de 2014. Nele, uma chilena que salva a vida de crianças judias e se torna uma heroína acaba sendo salva por um soldado alemão enquanto é torturada pela Gestapo. O contexto político, mais uma vez, é só o pano de fundo para o thriller. Como bom machadiano, o que interessa para Edwards são os conflitos internos, a profundeza da alma humana.

 

 

 

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