Uma nação fracassada

Fracassaram o Estado que não impede e a sociedade que silencia ao cotidiano de abuso sexual, estupro e gravidez precoce de suas crianças. O Brasil, na última semana, horrorizou-se com as camadas de brutalidade a que foi submetida a Menina de São Matheus, no Espírito Santo. Negra, de família pobre, criada pelos avós, Ela padeceu em silêncio sob o jugo do tio, que a violentava e ameaçava. A barbárie se estendeu por quatro anos, dos 6 aos 10 de idade; só foi descoberta quando Ela engravidou — e, sob mais violência, de agentes públicos, extremistas religiosos e oportunistas políticos, conseguiu interromper a gestação em Recife. Há o ambiente familiar de miopia aos maus-tratos, mas há também a cegueira de um poder público que descuida, quando tem obrigação de cuidar. O país é farto em legislação, direitos, atribuições: do Estatuto da Criança e Adolescente à Constituição. Enquanto Ela era violada, onde estavam Conselho Tutelar, escola, unidades de saúde, sistema de assistência social?

Toda indignação é pouca, porque o caso da Menina não foi exceção. É regra. Em fevereiro passado, o Ministério da Saúde, ainda sob o comando de Luiz Henrique Mandetta, lançou campanha de prevenção à gravidez na adolescência. Foi parceria com a pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, cuja titular, a pastora evangélica Damares Alves, prioriza convicções religiosas e interesses políticos, em detrimento das urgências da saúde pública de um Estado laico. Informava o ministério:

“No Brasil, em 2018, 21.154 bebês nasceram de mães com menos de 15 anos de idade. Apesar de o número estar caindo, essa redução só começou a ocorrer a partir de 2015, quando foram registrados 26.701 nascimentos. De lá para cá, a queda é de 27%, enquanto, na faixa etária de mães entre 15 e 19 anos, a queda ocorre desde o ano 2000, chegando a uma redução de 40% (passando de 721,6 mil para 434,6 mil).”

Não é só isso. O governo sabia que bebês de mães de até 19 anos enfrentam maiores taxas de mortalidade infantil: 15,3 óbitos por mil nascidos vivos, contra 13,4 da média nacional. A razão de mortalidade materna na faixa de 10 a 14 anos foi de 66 óbitos para cada cem mil nascidos vivos; na média geral, 55,1. Além da imaturidade biológica, as más condições socioeconômicas influenciam resultados obstétricos, informava o Ministério da Saúde. É público que meninas-moças de baixa renda são as que mais engravidam, pelo acesso restrito a informação sobre direitos sexuais e reprodutivos, contraceptivos, aborto legal e atendimento médico.

A gravidez precoce tem correlação com o abandono escolar. Uma em cada cinco adolescentes que engravidaram deixou de estudar, segundo a pesquisa EducaCenso 2019, também citada na campanha da Saúde. Ao todo, 91.740 escolas públicas e privadas participaram da consulta. Informaram que, em 2018, 65.339 alunas de 10 a 19 anos engravidaram. No fim da nota, o ministério informava que “o Código Penal classifica como crime (de estupro, acrescento eu) a relação sexual com menor de 14 anos”.

Há quase quatro décadas, o IBGE acompanha rigorosamente todos os nascimentos registrados em cartórios no país. Em 1984, foram 5.192 bebês de mães com menos de 15 anos de idade, 0,20% do total. O número cresceu ininterruptamente até o ano 2000, com 18.043 nascidos vivos (0,69%). De 2003 a 2016, ultrapassou 20 mil registros anuais; bateu recorde em 2014, com 24.165 (0,83%). Caiu no biênio 2017-2018, para 19.156 (0,67%) e 18.231 (0,63%), respectivamente. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública contabilizou 66.061 casos de violência sexual no país em 2018. Mais da metade das vítimas (53,8%) tinha menos de 13 anos de idade; quatro meninas nessa faixa etária são estupradas por hora no país.

O Brasil (ainda) tem um arcabouço de informações socioeconômicas e sanitárias que permitem diagnóstico e formulação de políticas públicas contra abuso sexual e gravidez precoce, mazelas tão inaceitáveis quanto duradouras. As instituições sabem que meninas e adolescentes, de Norte a Sul, sofrem abusos, são estupradas, engravidam. Na maior parte das vezes, são violadas dentro de casa por pai, tio, padrasto, avô, irmão, primo, amigo da família. O Estado sabe que a gravidez precoce, quando não mata mães e bebês, interrompe a formação escolar de jovens e mulheres, comprometendo o futuro delas, dos filhos, das famílias, das comunidades, do país.

A legislação é ampla, capaz de assistir as vítimas, permitir o aborto legal (por estupro ou risco de vida às gestantes), identificar e punir criminosos. O debate democrático para pôr fim à violência sexual contra meninas, adolescentes e mulheres brasileiras está interditado pelo moralismo cínico, pelo fundamentalismo religioso que afronta direitos civis, por autoridades covardes. É ciclo que precisa ser interrompido. Ou nenhum brasileiro, diante de tudo que agora sabe, poderá se olhar novamente no espelho sem se envergonhar.

+ sobre o tema

A vulnerabilidade e a força das mulheres negras

Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Políticas para...

A culpa calada

É preciso aprender a não ser bem-vindo. Mas há...

Marcha pelo fim da violência contra as mulheres toma Avenida Paulista

"Não podemos ficar quietas. Temos que nos manifestar", diz...

‘Marielle fez de mim um feminista’, diz pai de vereadora

Aos 66 anos, Antonio Francisco da Silva sabe cozinhar...

para lembrar

Gypsy braids: conheça o estilo de trança que promete dominar 2023

Depois de viverem seu ápice nos anos 1990 e...

Negras Empoderadas: mulheres bem-sucedidas criam grupo para combater discriminação

Iniciativa da empresária dos Racionais MCs e da consulesa...

Saltador que assumiu ser gay diz que atletas têm medo de sair do armário

Há dois anos, o saltador Ian Matos tirou um...
spot_imgspot_img

Mulheres recebem 19,4% a menos que os homens, diz relatório do MTE

Dados do 1º Relatório Nacional de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios mostram que as trabalhadoras mulheres ganham 19,4% a menos que os trabalhadores homens no...

Órfãos do feminicídio terão atendimento prioritário na emissão do RG

A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) e a Secretaria de Estado da Mulher do Distrito Federal (SMDF) assinaram uma portaria conjunta que estabelece...

Universidade é condenada por não alterar nome de aluna trans

A utilização do nome antigo de uma mulher trans fere diretamente seus direitos de personalidade, já que nega a maneira como ela se identifica,...
-+=