O futuro se avizinha: a memória ancestral do povo brasileiro

Estamos imersos num caos social, econômico, ambiental, sanitário, político… São meses de uma pandemia sem controle por parte do Estado brasileiro. Mais de 189 mil mortos.  São meses de isolamento furado, de comércios abertos, de ataque à saúde mental a cada fala desastrosa e equivocada do presidente da república. Existe uma suspensão do Estado de Direito em toda a esfera pública. Não há qualquer plano coletivo, não existe um plano de prevenção e controle da pandemia COVID-19, não há plano político, não há plano econômico. Não há estratégia de combate ao desemprego e a carestia impõe a fome a milhares de famílias neste país. O auxílio miserável de R$ 300,00 findou esse mês. 

A ciência e a pesquisa científica, tão incentivadas pela expansão das universidades públicas durante os governos progressistas, vêm sendo sistematicamente solapadas pelos “achismos” das redes sociais e, não somente por parte dos conservadores.

Em meio a tudo isso, está acontecendo, numa velocidade absurda, uma revolução tecnológica e já é possível estudar as gerações analógicas e as digitais. E, cá para nós, que abismo de uma para outra! Inclusive no que se refere à atuação política. 

Bom, neste contraponto, sobrevivente ao racismo e ao patriarcado imposto no regime escravagista, envolto em contradições, persiste uma tecnologia social emaranhada de segredos milenares, de conexões e outra cosmovisão da relação homem natureza, que sustenta a vida do povo: os terreiros, roças de candomblé, quilombos e os povos originários. Ao dizermos sustentação, falamos da memória ancestral que o povo carrega, que ainda não foi desvendada por nenhuma organização política revolucionária no século XX. A forma como se entende o processo organizativo do povo brasileiro aponta que o conceito de organização social no modelo clássico é limitado para o entendimento do precioso e complexo sistema de sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais, sendo que, talvez quem se aproximou com mais afinco desse processo foram as lutas anticoloniais no continente Africano, os Panteras Negras/EUA e o MNU–Movimento Negro Unificado/Brasil.

Esses territórios tradicionais persistem como afronta ao modo capitalista racista, patriarcal e teocrático. O Genocídio imposto a esses povos perdura desde a primeira rota escravagista construída além-mar. Assim, viver é revolucionário! Os espaços constituídos ao longo desse processo histórico que salvaguardou essa ligação diaspórica com a origem influenciaram todo o território brasileiro. Todavia, pelo processo sistêmico genocida, de tentativa de esvaziamento do poder contido nesta cosmovisão e na materialidade deste modo de ver e viver o mundo – oriundo dos povos originários e da negritude -, observa-seuma avassaladora catequização cristã junto aos povos e comunidades tradicionais na atualidade e, ao mesmo tempo, um aumento da participação de brancos em espaços litúrgicos dessas tradicionalidades não cristãs – historicamente criminalizadas e endemonizadas pelo colonizador.  É sedutor e libertador não precisar da mediação de um salvador ou do céu, ou mesmo não ser mais mobilizado pela culpa ou pecado, nem botar fé no distanciamento entre criatura e natureza para solução dos problemas individuais e comunitários. No fundo se trata de desfrutar o poder. 

Veja, não é somente uma crítica a esse desfrute, mas é uma demarcação de posição a quem esse poder pertence, no frigir dos ovos. E esse movimento existe pela ação vilipendiadora do racismo e da exploração de classe. Ao mesmo tempo que se convence a negritude massiva e pobre deste país, assim como os povos originários, que é demoníaca a forma como cultuam o sagrado e que esta é a causa de todas as mazelas (desemprego, fome, analfabetismo, violência de gênero, carestia) que enfrentam no cotidiano de sua sobrevivência; a ocupação de espaços tradicionalmente negros por brancos impõem uma “passabilidade” a alguns de seus rituais. Nega-se a história, negam-se os fatos e seguem nos roubando, seqüestrando e matando, assim como fizeram com os nossos ancestrais em outros tempos. É a perversidade do esvaziamento de sentido da cultura dos nossos antepassados, com a imposição da narrativa do branco salvador.

Para a negritude que foi educada nesta lógica perversa, sobretudo para uma geração nascida a partir da efervescência dos anos 80, retomar o caminho ancestral não é fácil. O colonizador também está dentro das nossas cabeças. Falar de ancestralidade, seja via negritude ou povos originários, é artigo de moda!Cada um quer ter a sua. E podemos encontrar nas redes sociais conteúdos vastos sobre esse assunto, no entanto, muitas vezes sem a práxis de quem o defende ganhando seus likes e seguidores.

As novas gerações da negritude oriundas da década de 90 conseguem nomear as práticas racistas para além de sentir e engolir como vivenciado por gerações anteriores. Mas, a retomada do caminho ancestral não será virtual. Será em terra firme, no terreiro grande, comunitário e aquilombado. Esse caminho que atravessou cinco séculos e, se há a possibilidade de nomear e denunciar as práticas racistas deve-se a esses livros humanos, desses povos e comunidades tradicionais.  

A memória ancestral do povo brasileiro contém elementos para derrotar o neofascismo atual. Somos raízes, profundas, fecundas. O grave, na atualidade, é que não estamos conseguindo ler, decifrar, compreender esses livros humanos e estamos deixando esses territórios vazios da nossa presença.

O futuro se avizinha. É, 2021.  

 


 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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