Epistemicídio

Muitas são as razões que advêm de uma realidade inaceitável contra a qual a militância negra vem historicamente lutando e frente à qual as respostas do Estado permanecem insuficientes, exigindo permanente esforço de compreensão.

Assim, contrato racial, biopoder e epistemicídio, por exemplo, são conceitos que se prestam como contribuição ao entendimento da perversidade do racismo.São marcos conceituais que balizaram a tese de doutorado que defendemos junto à USP em agosto passado sob o título “A construção do outro” como não-ser como fundamento do ser. Nela procuramos demonstrar a existência no Brasil de um contrato racial que sela um acordo de exclusão e/ou subalternização dos negros, no qual o epistemicídio cumpre função estratégica em conexão com a tecnologia do biopoder.

É o filósofo afro-americano Charles Mills quem propõe no livro The Racial Contract (1997), que devemos tomar a inquestionável supremacia branca ocidental no mundo como um sistema político não-nomeado, porque ela estrutura “uma sociedade organizada racialmente, um Estado racial e um sistema jurídico racial, onde o status de brancos e não brancos é claramente demarcado, quer pela lei, quer pelo costume”. Um tipo de sociedade em que o caráter estrutural do racismo impede a realização dos fundamentos da democracia, quais sejam a liberdade, a igualdade e a fraternidade,posto que semelhante sociedade consagra hegemonias e subalternizações racialmente recortadas.

A branquitude, enquanto sistema de poder fundado no contrato racial, da qual todos os brancos são beneficiários, embora nem todos sejam signatários, pode ser descrita no Brasil por formulações complexas ou pelas evidências empíricas como no fato de que há absoluta prevalência da brancura em todas as instâncias de poder da sociedade: nos meios de comunicação, nas diretorias, gerências e chefias das empresas, nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, nas hierarquias eclesiásticas, no corpo docente das universidades públicas ou privadas etc. 

Por seu lado, Michel Foucault entende ser o racismo, contemporaneamente, uma dimensão do poder soberano sobre a vida e a morte. Operacionaliza-se, segundo Foucault, por meio do biopoder, conceito que descreve uma tecnologia de poder, uma biopolítica que permite a eliminação dos segmentos indesejáveis. Foucault sintetiza essa operação na expressão “deixar viver ou deixar morrer.”

Assim, para ele, “(…) o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros, a função assassina do Estado só pode ser assegurada desde que o Estado funcione, no modo do biopoder, pelo racismo” (Foucault, 2002, p. 306). A análise dos dados relativos à mortalidade, morbidade e expectativa de vida sustentam a visão de que a negritude se acha inscrita no signo da morte no Brasil, sendo sua melhor ilustração o déficit censitário de jovens negros, já identificados estatisticamente em função da violência que os expõe prioritariamente ao “deixar morrer”, além dos demais negros e negras, cujas vidas são cerceadas por mortes, preveníveis e evitáveis, que ocorrem pela omissão do Estado.

Alia-se nesse processo de banimento social a exclusão das oportunidades educacionais, o principal ativo para a mobilidade social no país. Nessa dinâmica, o aparelho educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual. É fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da auto-estima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar. A esses processos denominamos epistemicídio (Carneiro, 2005).

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