“A menina é a mãe do mundo”, por Hamilton Borges dos Santos (Walê)

São 23 horas e 33 minutos de uma sexta-feira. Escrevo a noite, estou só e contemplando meu passado. Como cheguei até aqui ? Pergunto ao menino que fui , vivendo numa cidade tão suja, tão perversa , tão violenta e racista como Salvador e esse menino apenas diz que brincou o quanto pôde. Sendo assim, se livrou do Leviatã.

Explico: na quinta-feira me dirigi a Oi Kabum para participar da abertura do Roda Gigante, promovido pela Rede Nacional Primeira Infância e Avant*. Este evento pretende dar visibilidade a situação da infância, ao cuidado e o abandono, as leis e ao afeto que devemos dedicar a esses seres superiores. Eles, que nos dão proteção divina enquanto cantam, brincam , reequilibrando esse planeta. Como diz Roquinho: ” Omi, a criança é o pai da humanidade”. Ele me ensinou a brincar pelas terras alterosas das Minas Gerais.

Nós temos lutado contra o empreendimento industrial carcerário, que é um empreendimento bem sucedido na prática de nos eliminar em vida. Em doses colossais e leves, vai diminuindo nossas almas em meio ao quadrado do cimento e grade. É uma poderosa instituição de seqüestro retroalimentada pelo racismo, irmão siamês do capitalismo, que dá seu bote numa nova ordem que é de privatizar, lucrar e encobrir a barbárie.

Há tempos temos olhado para dentro das prisões, numa perspectiva cultural, na acepção da palavra , para além do evento e da erudição. Nos recusamos a ser tratados como aqueles da cultura popular, enquanto o erudito é o outro, europeu e cristão, macho e violento, dominando todos os recursos e nos deixando subalternos, enquadrados numa cultura menor , num caixote multicolorido que eles chamam de diversidade.

Cultura é ação cultural , dinâmica , viva , arteira. Não a fabricação cultural que ronda Salvador em meio ao lixo, ao abandono e as execuções sumárias e extrajudiciais que nos eliminam.

Somos portadores de uma cultura erudita: o canto celestial de uma roda de Xangô que emerge da distante Praia Grande, da voz de minha Yalorixá Mãe Senhora, que me ensinou alguns segredos. O olhar e majestade de Obaraí que enfeita o mundo desde os lados do Aganju…pense!!!

“kaa já loni ago Masá”

Bom o fato é que, há uns 10 a 12 anos eu fui apresentado por Roquinho e Sônia Augusto, minha querida amiga e mestra, à linda e meiga Lydia Hortélio . Uma brincante que, há mais de 50 anos, encanta o Brasil e o mundo com suas receitas de vida baseadas na cultura das crianças. Fundamentadas nos elementos da natureza contidos nos corpos, nas mãos , nas cantigas e nas invenções dos meninos e meninas.Uma solução para a barbárie. Lidya é uma sacerdotisa.

Fui presenteado essa noite, com a dádiva de rever Lydia Hortélio, e ouvi-la falar de brinquedos e brincadeiras, da alma doente do mundo que pode ser curada se cuidarmos de nossos meninos, se aprendermos a ouvi-los.

Falei com ela.

Disse de nossas brinquedotecas espalhadas pelas cadeias da Penitenciária Lemos Brito; das nossas manhãs com os filhos dos prisioneiros e prisioneiras; de nossos inventos de brinquedos. Que estamos montando bibliotecas infantis, que os homens esquecidos e enterrados naqueles muros altos que geram lucro, brincam com seus filhos e, se não tem filhos, brincam também. Que eles e elas resgatam suas crianças esquecidas, por vezes amarguradas, machucadas e lembram brincadeiras antigas. Que eles se pintam, correm, gritam querendo falar como eu , com as crianças que foram um dia . Como sobreviveram?

Agradeci a Lydia Hortélio por ter ido tão longe ensinar a um baiano em seu exílio de Salvador o valor dos brinquedos e das brincadeiras. E agradeço a Dra. Andreia Beatriz, a Zilda Souza , a Ricardo Andrade e Marcus Alessandro, a Maria de Fátima e Milena, ao Superintende Tenente Coronel Paulo Cezar, ao Major Júlio e Capitão Marcelo Amorin, a Clésio, Daniel, Gilberto e Pereira, aos prisioneiros e familiares dos mesmos dos módulos 1, 2 3, 5 , as prisioneiras do Conjunto Penal Feminino, sobretudo as que amamentam, aos prisioneiros da Lafaiete Coutinho , a Dexter e Patrícia Omena e aos meninos do mundo representados pelo meu melhor professor no brincar: Onirê, MEU FILHO que agora dorme com um mapa na mão entregue pelo menino que fui …talvez para a nossa liberdade.

Hamilton Borges dos Santos (Walê)

Brincante da Quilombo Xis- Ação Cultural Comunitária

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