A linhagem das Carolinas

a mulher negra que escreve já é uma transgressora.

 Por  Daniela Luciana Do Afro Latinas

Ao reunir Teresa Cárdenas, Fernanda Felisberto, Yasmin Thayná e Eliane Gonçalves numa mesa em torno do tema “ Rotas e Roteiros: produção audiovisual e literatura”, temos a oportunidade de navegar juntas por mares a desbravar e firmar portos para que outras mulheres tenham a oportunidade de publicar e serem lidas, multiplicando nossas vozes únicas. Parafraseando a canção de baianos do Recôncavo, cantada por Bethânia, essa mesa é um convite: “vou aprender a ler pra ensinar minhas camaradas”.
Escrever não é coisa que se escolha, é escolha que se concretiza, para além de dom e oportunidade.  A mulher negra que escreve torna essa frase mais complexa, pois o concretizar-se de sua escrita pública – em geral – atende a um longo e penoso percurso por caminhos nos quais não há incentivo, tradicionalmente. A escritora e poetisa Cristiane Sobral, na minha visão pessoal, sintetizou essa escolha num poema já famoso e inspirador, “Não vou mais lavar os pratos”.
A brasiliense inscreve na própria obra o nosso momento de libertação para a leitura e escrita, nessa frase literal que se preenche de simbólico ao longo do poema. Eu, mulher negra, saio do lugar que me deram de cuidadora, provedora, ser que faz, para o lugar que escolhi, de produtora de sentidos, de manipuladora do estético, de feiticeira das palavras.
O exercício da leitura, prática indicada para aprimorar e estimular a escrita, não é acessível para a maioria das mulheres negras por diversos motivos. Um deles, bem indicado por Sobral, é que precisamos usar o tempo para tarefas domésticas por uma tradição quase universal, nosso lugar inescapável há bem pouco tempo e parte de um ideário contra o qual ainda lutamos.
No caso da mulher negra, acessar a leitura é ainda mais complicado, por questões econômicas, valores culturais e familiares, onde ler é um hábito visto ainda como uso improdutivo do tempo, lazer supérfluo, em muitos espaços onde há tanto para se fazer, como se ler não fosse um importante fazer.
Acrescemos a isso o fato que o acesso a outras escritoras negras é também restrito e a formação pode ser boa, mas baseada em origem branca, masculina, ocidental. Cada mulher negra que escreve o faz contra o cânone, contra o estabelecido, contra o esperado e transgride, mesmo que nunca seja publicada ou reconhecida. Mesmo que seus temas não sejam de esquerda ou lidos como libertários, ela transgride no ato de usar seu tempo para criar textos quando foi parte da maioria de analfabetos em países colonizados há alguns séculos.
A emergência das redes sociais abre possibilidades para que mais mulheres escrevam e se leiam diariamente, acessem autoras e suas obras num modelo de consumo mais econômico e capilarizado. Além de compartilharem impressões e reflexões sobre o que leem, mais gente negra lê e escreve para outros lerem que há dez anos e essa circularidade de ideias/temas/reflexões traz impactos que ainda não podemos dimensionar. Ao meu ver é um momento de reconexão da oralidade, um bate-tambor virtual que a todas nós toca e ainda surpreende.
Romper com o fechado mercado editorial brasileiro, a forma e espaços elitistas das feiras literárias, o acúmulo de papéis que obriga escritoras a desenvolverem o trabalho literário em paralelo a outras atividades que gerem renda é o grande desafio de hoje. Ainda é insatisfatório, para todas nós, o número de escritoras publicadas, os textos disponíveis no mercado a partir das integrantes da linhagem de Carolina de Jesus. Mas, inspiradas em outras desbravadoras de mares literários, caminharemos em partilha, não nos impedirão de ser quem somos e avançar.

Daniela Luciana, integrante da Irmandade Pretas Candangas e do coletivo literário Ogum´s Toques, mantém o blog Caleidoscópio Mutante.

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