A polícia privada que guarda as vidraças do Carrefour

Para o pescoço esmagado pelo joelho do agente fardado por longos quatro minutos, que diferença faz se o uniforme é policial ou privado? João Alberto não foi apenas morto por ser negro. João Alberto foi morto porque, sendo negro, a sua carne é, para seus algozes privados, a mercadoria mais barata na gôndola.

Sem desmantelar o capitalismo policial por trás do racismo, vidas negras continuarão a ser alvejadas por algozes particulares, protegidos por trás de vidraças que ofuscam, mas não eliminam a distinção entre humanidade e barbárie.

Há no Brasil um exército de 1 milhão de vigilantes aptos a trabalhar, 51% deles formalmente inativos, segundo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020. Inativo não significa inoperante. O setor de segurança privada é marcado por trabalhos informais (“bicos”), tolerados, mas não permitidos por lei para policiais, oficiais ou praças.

Regulado pela portaria 3233/2012 da Polícia Federal, o controle sobre o setor é pífio. O Congresso dorme por uma década em cima de uma lei sobre o tema. Órgãos de fiscalização, como o MPF, poderiam fazer muito mais do que fazem.

Não é à toa que uma enxurrada de denúncias de mortes, torturas e discriminação emerge contra agentes privados em supermercados, shoppings e afins. O Grupo Vector, responsável pela segurança do Carrefour onde João Alberto foi morto, possui como sócios três policiais. São policiais privados que navegam entre as zonas do legal e ilegal, do privado e do público. E não é de hoje. Policiamento privado e público se misturam a ponto de se confundirem na história brasileira. A gênese da polícia no país, no século 19, se confunde com a proteção da propriedade da coroa portuguesa e o controle de escravos fugitivos. A história que se segue é de uma polícia cada vez mais profissionalizada, mas nunca distante dos interesses de elites e de seus carrascos privados.

À medida que o espaço público, num capitalismo policial, é essencialmente de “propriedades privadas de massa”, a distinção entre farda e uniforme privado se dissolve. A quantidade de vigilantes privados não flutuou de acordo com o aumento da violência, como poderia presumir o senso comum, mas, sim, com o aumento do PIB. Ou seja, mais riqueza, mais controle.

Quando entramos no supermercado, adentramos numa esfera onde polícias privadas nos veem, negros, como ameaças. Vidraças são o portal que separam, de um lado, o espaço público, dos cidadãos, e, de outro, o privado, dos consumidores. Negros são estranhos aos dois mundos. Uma viagem a um supermercado é um teletransporte para um mundo onde as máscaras de uma polícia estatal, profissional e cidadã se dissolvem e o que resta é o nu e cru exército privado que protege as vidraças e os consumidores.

É difícil brancos entenderem o que houve com José Alberto para além da violência brutal, porque para eles a distinção entre espaços públicos e privados é ininteligível: como brancos, estão acostumados a transitar com facilidade entre o privado e o público, em ambos vistos a priori como consumidores-cidadãos, ao passo que negros são vistos, no público, como cidadãos incompletos, a quem garantias legais não se aplicam e, no privado, como consumidores suspeitos cuja carne é barata e a dor gratuita.

Choram pelas vidraças porque elas representam o mundo que separa nós e eles, consumidores e vândalos. É essa distinção, racializada, que queremos destruir, não as vidraças. Antirracismo sem questionar capitalismo policial é uma vidraça, transparente para uns, pela desigualdade que evidencia, mas sagrada e opaca para outros, por encastelar as ilusões de que vivemos num mundo igual.

Thiago Amparo
Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
Fonte: Por Thiago Amparo, da Folha de S.Paulo

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