A semana termina com o Rio de Janeiro expondo, novamente, em praça pública as vísceras de eternas crise de segurança pública e degradação institucional. De um lado, criminosos atacam pedestres em ruas do bairro tornado cartão-postal, à vista de câmeras de segurança, sem sombra de policiamento ostensivo. De outro, punhados de cidadãos organizam-se via rede social para assumir, como milicianos, atribuições que o Estado não cumpre. Parece — e é — enredo encomendado para anabolizar plataformas políticas à extrema direita a um ano das próximas eleições municipais. Errados não estão. Em meia década, a tática levou ao Planalto e ao Palácio Guanabara, respectivamente, um presidente e dois governadores.
Até Victor Santos, o recém-empossado secretário de Segurança Pública, após hiato de cinco anos sem pasta no Rio de Janeiro, apontou os autodenominados justiceiros como criminosos:
— O berço da milícia é exatamente isso — disparou em entrevista à GloboNews, numa referência ao crime previsto no artigo 288-A do Código Penal, com pena de reclusão de quatro a oito anos.
Sem falar em outras violações igualmente passíveis de inquérito, denúncia, julgamento e punição: incitação ao crime, ameaça, tortura, lesão corporal, tentativa de homicídio… Numa mensagem, um dos brutamontes sugere deformar o rosto do suposto agressor de um idoso em Copacabana com soco-inglês; outro, amarrar o suspeito a um poste para dar exemplo. Em 2023, o Brasil de capitães do mato e pelourinhos num balneário perto de você.
Na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), já tramita projeto para instituir programa de guardião da segurança pública, eufemismo para a legalização da milícia. Outra pegadinha eleitoral, porque a proposta é flagrantemente inconstitucional, afirma o juiz no TJ-RJ e professor de processo penal na UFF André Luiz Nicolitt. A Carta Magna, no artigo 144, avisa que segurança pública é dever do Estado, exercido pelas polícias Federal, Rodoviária, Civil, Militar, Penal. Prefeituras podem constituir guardas municipais.
Enquanto holofotes se voltam às soluções tão violentas e antigas quanto inócuas, autoridades e sociedade dão as costas para o que pode verdadeiramente, um dia, recuperar a Cidade, vez em quando, Maravilhosa. Aconteceu no último fim de semana, voltado à celebração do Dia Nacional do Samba, 2 de dezembro. Na Cidade do Samba, linha de produção de alegorias, fantasias e adereços das escolas do Grupo Especial, dois dias de minidesfiles serviram a prévia do que se verá em fevereiro. Pelo terceiro ano, o evento ocorre como abertura (ainda) não oficial da temporada carnavalesca. No sábado, da Central do Brasil partiu o trem das 18h04 com destino a Oswaldo Cruz. A viagem forjada por Paulo da Portela, sambista, ativista, fundador da centenária escola de samba que passou a levar como sobrenome, foi ressuscitada como homenagem por Marquinhos de Oswaldo Cruz.
Compositor, cantor e produtor cultural, ele iniciou em 1996 a jornada que leva público e artistas ao bairro da Zona Norte para a noite de festa. A multidão se espalha em shows e rodas de samba por três palcos e dezenas de bares, de um lado e de outro da estação de trem. Neste ano teve Fundo de Quintal, Leci Brandão, Fabiana Cozza e Martinho da Vila, além das velhas guardas de Portela, Império Serrano, Mangueira, Salgueiro e Vila Isabel. O público foi estimado em 116 mil pessoas, mais que a média diária da última edição do Rock in Rio. De empregos diretos, 1.400, dos quais 650 eram músicos; indiretos, 10 mil.
O Trem do Samba, assim como o carnaval da Marquês de Sapucaí, é festa que ativa a força motriz da economia moderna, o setor de serviços. Escolas de samba estão em atividade o ano todo, nos territórios que abrigam quadras, ensaios, feijoadas, apresentações, metrópole afora; e na fábrica de alegorias na região central da cidade. Demandam mão de obra de qualificação diversificada, da base ao topo da educação regular. O Trem, tal como a Feira das Yabás, outra atração idealizada por Marquinhos de Oswaldo Cruz, que completou 15 anos em 2023, leva gente à Zona Norte e impulsiona estabelecimentos e empreendedores locais.
No início da semana, o IBGE reportou aumento de 0,1% no PIB no terceiro trimestre. O setor de serviços, que inclui comércio, alimentação, hospedagem, cultura, representava dois terços da atividade econômica do país. Cresceu no trimestre 0,6%, mesmo percentual da indústria; no ano, avança 2,6%, mais que o dobro (1,2%). O consumo das famílias, que se relaciona intensamente com comércio e serviços, subiu 1,1% de julho a setembro. Em nove meses, acumula 3,4%; o PIB, 3,2%. Tanto o Rio de Janeiro quanto o Brasil têm imenso potencial para gerar riqueza, trabalho e renda a partir da produção genuína de sua gente preta, pobre, favelada, que pariu o samba, a festa. Mas entra ano, sai ano, a brutalidade, o fracasso, é o farol.