A restrição da advocacia pro bono e a limitação ao acesso à justiça

Após 15 anos de advocacy do Instituto Pro Bono, o novo Código de Ética e Disciplina da OAB enfim regulamentou a prática da advocacia voluntária e gratuita

Por Rebecca Groterhorst

Imagem: atendimento do Instituto Pro Bono realizado no Metrô Tatuapé, em São Paulo. Foto: Alexandre Gonçalves Jr.

Imagine que você aceitou ser fiador de aluguel de um conhecido vizinho da rua. Ele estava passando por uma situação difícil, vendeu todos os bens que possuía e pediu sua ajuda para alugar uma casa. Acontece que você também está passando por dificuldades financeiras, mas tem um pequeno e simples imóvel em seu nome e decide ajudá-lo. O tempo passa e de repente você recebe uma notificação de um oficial de justiça. Sem ter dinheiro suficiente para contratar um advogado e nem saber a quem recorrer para entender o que significava esse tal de “mandado de intimação”, você deixa de responder a essa notificação. Acontece que ignorar esta intimação pode ter consequências graves, como perder seu único imóvel para pagar a dívida deixada pelo seu vizinho. 

Essa é apenas uma das mais variadas histórias que acontecem no cotidiano de inúmeras famílias brasileiras. Não são raras as vezes que vemos casos em que famílias são despejadas do único imóvel que possuem, mães deixam de cobrar pensão alimentícia por não saberem que têm esse direito, mulheres vítimas de violência não saberem como obter proteção através da justiça, famílias não conseguem pagar suas dívidas sem comprometer as necessidades básicas, cidadãos têm o nome inscrito em órgãos de proteção ao crédito e muitos outros. Em todas as situações há uma questão jurídica que, além  de amparo, também precisa de reconhecimento para que sejam feitas algumas ações no sentido da efetivação e/ou proteção dos direitos envolvidos em cada caso.

Há inúmeras barreiras que impedem com que a parcela vulnerável da população se utilize do sistema formal de solução de conflitos e, dentre elas, está a própria dificuldade de reconhecer que é titular de um direito (Groterhorst, Passamani, Romeu e Zago, 2014). Quando falamos nesse reconhecimento, é preciso lembrar primeiramente que o acesso à informação sobre os próprios direitos se torna cada vez mais escasso em um país cuja vulnerabilidade econômica e social aumenta diariamente. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017) apontam que há aproximadamente 54,8 milhões de brasileiros dentro da linha da pobreza. Muitos deles privados do acesso a direitos básicos, como abastecimento de água potável e coleta e tratamento de esgoto. Nesse sentido, a legitimação de direitos é o primeiro passo para a plena efetivação.

A restrição da advocacia pro bono

Mas imagine agora que advogados estão dispostos a realizar, algumas vezes ao mês, um trabalho voluntário e gratuito dentro – ou por meio de – uma organização social sem fins lucrativos. A intenção é justamente levar informação jurídica adequada e precisa sobre os direitos que possuem e como reivindicá-los àqueles que não possuem condições financeiras para contratação de um advogado. Assim,  a iniciativa visa amparar quem possui  demandas jurídicas para que reconheçam, enfim, seus direitos e saibam a quem recorrer. Esses advogados estariam exercendo fielmente a função social da advocacia, por meio da prática pro bono. [1]

Se por um lado, essa atitude é considerada admirável, devendo ser fomentada entre toda comunidade jurídica, desde advogados individuais, departamentos jurídicos de empresa até  escritórios de advocacia de grande porte; por outro, essa mesma atitude não parece ter o mesmo impacto para o Tribunal de Ética e Disciplina (TED) da seccional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP). No final de março, este tribunal reacendeu o antigo debate sobre os contornos e limites éticos da advocacia pro bono, causando indignação entre advogados e advogadas, além de organizações da sociedade civil que já se beneficiaram da prática e/ou a fomentam. [2]

Ao decidir um caso, no Proc. E-5.178/2019 [3], sobre a prestação de serviços jurídicos de forma voluntária e gratuita a beneficiários de uma instituição sem fins lucrativos, o TED acabou por reiterar que a advocacia pro bono só é permitida se exercida de forma eventual, mencionando estar vedado o seu exercício pelas instituições sociais sem fins econômicos, pois estas devem ser beneficiárias, e não fomentadoras da prática pro bono. A decisão chocou o Instituto Pro Bono e parceiros, já que pretende impor restrições injustificadas à advocacia pro bono. Após 15 anos de advocacy do Instituto Pro Bono, o novo Código de Ética e Disciplina da OAB enfim regulamentou a prática da advocacia voluntária e gratuita, trazendo diretrizes e segurança aos profissionais do Direito que atuam de forma pro bono.

Na decisão acima mencionada, há dois pontos que nos preocupam e que merecem maior destaque, quais sejam, a questão da eventualidade e a vedação da prática pro bono por instituições sociais sem fins econômicos, tendo em vista que não estão revestidas na forma de sociedade de advogados. [4]

A questão da eventualidade

O Código de Ética e Disciplina da OAB diz que a advocacia pro bono é a prestação de serviços jurídicos de forma gratuita, eventual e voluntária. A gratuidade e voluntariedade de tais serviços jurídicos não geram maiores problemas, mas quando falamos em eventualidade, surgem inúmeras dúvidas, pois no texto não há nenhum conceito específico sobre o que seria eventualidade. Assim, há uma ambiguidade no próprio uso do termo, já que não está escrito de forma específica a que se refere essa eventualidade [5], e nem mesmo se está ligada a uma determinada regularidade, por exemplo, se é diária, semanal, mensal, anual, etc.

Ao inserir a questão da eventualidade no referido Código, entendemos que o texto não desejava limitar em si o exercício da advocacia voluntária, mas sim ampliar a sua proteção contra possíveis desvios de conduta de advogados. Isso porque um profissional poderia se utilizar do serviço jurídico gratuito para captar clientes de maneira irregular, o que é totalmente contra o que é recomendado pela advocacia pro bono. Inclusive, o próprio Ato Provimento 166/2015 [6], editado pelo Conselho Federal da OAB, já assegura que advogados que tenham atuado pro bono estão impedidos de prestar serviços jurídicos remunerados a entidades ou indivíduos que atenderam por um período de três anos.

Além disso, se considerarmos que a prática pro bono deve ser realizada pontualmente, ela não cumpriria com a sua função social, já que os advogados têm responsabilidades sociais diretamente relacionadas com o direito de acesso à justiça (Maldonado, 2017). Atualmente, a advocacia pro bono complementa os serviços jurídicos prestados pela Defensoria Pública, servindo como ferramenta que potencializa a democratização do acesso à justiça e a transformação social. Isso porque, apesar da Constituição brasileira de 1988 ter previsto em seu art. 5o, LXXIV, a prestação da assistência jurídica integral e gratuita pelo Estado aos que comprovarem insuficiência de recursos, sabe-se que ainda hoje não é possível garantir o acesso à justiça de forma plena e eficaz a toda população vulnerável. A Defensoria Pública seria, de acordo com o texto constitucional, a instituição responsável pela defesa e orientação jurídica dos hipossuficientes econômicos, mas estudos realizados pelo IPEA (2013) demonstram que no Brasil há um déficit de 10.578 defensores públicos.

Parece-nos, então, contraditório que se queira impor limitação ao exercício da advocacia pro bono, exercida para proteger direitos fundamentais de populações vulneráveis e o bem-estar social. Afinal, o próprio Código de Ética menciona, em seu artigo 2º, que “o advogado é indispensável à administração da Justiça, é defensor do estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe exercer o seu ministério em consonância com a sua elevada função pública e com os valores que lhe são inerentes”. Dessa forma, a regra deve ser interpretada em prol dos beneficiários da assessoria jurídica gratuita, ou seja, da população vulnerável socioeconomicamente, prezando-se para que não haja desvios em seu exercício.

Instituições sociais sem fins lucrativos e o acesso à justiça

Em relação a instituições sem fins econômicos, devemos olhar para a trajetória de diversas organizações sociais que vêm defendendo os interesses dos mais vulneráveis por meio de diferentes experiências e estratégias. O trabalho dessas instituições contribui para a melhoria do acesso à justiça e do próprio exercício da cidadania, não só quando atuam para a promoção e implementação de políticas públicas a grupos vulneráveis, mas também quando promovem discussões para o aprimoramento do judiciário e do sistema de justiça, utilizando o direito por meio de atividades de extensão universitária, da advocacia popular, das promotoras legais populares, da advocacia pro bono e até mesmo do litígio estratégico (Cardoso, Fanti, Miola, 2013).

Não precisamos listar o trabalho extraordinário que realizam, na maioria das vezes com recursos escassos, para demonstrar a importância da atuação jurídica, que muito além da atividade de advocacia propriamente dita. A mobilização jurídica utilizada pelas organizações sociais geralmente está dentro de uma estratégia de atuação mais ampla na defesa de direitos, desempenhando papéis que certamente não seriam assumidos pelo poder público (Cardoso, Fanti, Miola, 2013). Assim, não há necessidade de se registrarem como sociedade de advogados, pois a atuação destas sociedades é voltada para fins jurídicos propriamente dito, enquanto a atuação das instituições sem fins econômicos ultrapassa a fronteira da atividade de advocacia.

Nesse sentido, a decisão do Tribunal de Ética e Disciplina é totalmente injustificada, já que devemos fomentar a advocacia pro bono no sentido mais amplo do termo, ao invés de limitar ainda mais a atuação de profissionais que desejam reverter seu conhecimento para a sociedade de forma responsável e solidária ou restringir o campo de atuação das instituições sem fins econômicos. O direito de acesso à justiça deve ser promovido sem obstáculos, buscando-se não só o fortalecimento das instituições sociais, mas a ampliação dos espaços de atuação na defesa de direitos. Eventuais abusos e desvios da prática pro bono devem ser repreendidos, destacando-se a importância da atuação da OAB, por meio de seus Tribunais de Ética e Disciplina, que deve monitorar desvirtuamentos de conduta, fomentar o caráter social da advocacia voluntária e gratuita por todo o território nacional e assegurar que essa prática seja realizada de forma plena e sem restrição.

Rebecca Groterhorst, coordenadora de programas do Instituto Pro Bono desde 2013, é professora de Direito Constitucional, pesquisadora, mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP e doutoranda na mesma faculdade.  

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