Agualusa, por Sueli Carneiro

O olhar do outro nos constitui. Somos, grandemente, o que esse olhar do outro diz a nosso respeito. Um limite inescapável de nossa identidade. O escritor angolano José Eduardo Agualusa, em entrevista à revista Época, nos dá exemplos interessantes sobre como nós brasileiros somos percebidos por estrangeiros.

Em primeiro lugar, ele alude à nossa incapacidade de nos compreender como povo e nação. Em segundo, refere-se à nossa mentalidade, segundo ele, colonizada, que impediria sobretudo às nossas elites nacionais apreciar a originalidade do ser brasileiro, para ele ‘‘uma súmula de África e Europa”. Essa súmula, no entanto, não se realiza como portadora de uma auto-estima positiva do brasileiro, porque uma das partes dessa equação, a africana, permanece rejeitada no imaginário e na prática social, em especial nas classes superiores.

Como a maioria de estrangeiros, Agualusa interessa-se mais pelo que há de africano no Brasil do que pelo que seja europeu. Triste sina de uma elite que empreendeu todos os esforços para tornar-se uma expressão da Europa nos trópicos, utilizando para isso diversas estratégias: desde a promoção do branqueamento físico de sua população, por meio dos estímulos dados à imigração européia, à adoção passiva de um eurocentrismo conjugado com a sistemática desqualificação, folclorização e exotização das manifestações culturais negro/africanas e indígenas. Por isso praticamos, como afirma Agualusa, um nacionalismo que não é xenófobo. Porém, essa atitude não xenofóbica restringe-se, de regra, ao que venha da parte branca do exterior. Basta ver o tratamento dispensado a africanos exilados atualmente ou o veto à imigração africana presente numa de nossas constituições da década de 30.

O que o escritor supõe seja incapacidade de compreensão das elites do país sobre a verdadeira natureza de nossa identidade nacional revela-se, em verdade, numa incompatibilidade entre o projeto, abortado, de país branco europeizado, um desejo que permanece latente nesses segmentos da sociedade e o país real que foi sendo forjado ao longo de nossa história pela resistência sobretudo de sua porção rejeitada, a negritude e africanidade que o conforma. Uma resistência cultural que confere a originalidade que lhe permite escapar de ser apenas um simulacro de país europeu, exercício patético em que se empenha parte significativa dos seus setores dominantes.

Apesar dos esforços de Gilberto Freyre para positivar a contribuição portuguesa, negra e indígena de nossa formação social, permanece no imaginário social essa visão negativa que permite que certas idéias encontrem plena aceitação entre nós, como a frase atribuída a De Gaulle segundo a qual o Brasil não seria um país sério e que recorrentemente ouvimos brasileiros repetir. Ou a piada segundo a qual Deus teria feito um país maravilhoso de dar inveja a outros povos, mas, para compensar, colocou nesse paraíso um ‘‘povinho”.

Portanto, a suposta ‘‘incompreensão” das elites sobre o seu país resulta da frustração entre o projeto sonhado e essa realidade que traz como agravante o fato de que, como um karma ou punição, o melhor reconhecimento que o país alcança advém do que é apropriado da herança de sua parte negra/africana, que marca de forma indelével a identidade do país para o mundo, apesar da negação e/ou exclusão.

Diz Agualusa: ‘‘No plano internacional, a literatura brasileira ainda não tem a importância da música. O Brasil já produziu grandes escritores, como Guimarães Rosa, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro. Os dois últimos para mim são africanos e influenciam os autores da África”. Como medida da exclusão histórica do negro desde o pós-abolição, do acesso ao desenvolvimento econômico e cultural e sua invisibilização, o escritor alude ao fato de que ‘‘atualmente não dá para citar um grande escritor negro ou mestiço brasileiro. Isso é incrível porque no século XIX havia grandes escritores afro-descendentes, como Machado de Assis e Cruz e Sousa”.

É provável que o autor desconheça a forma categórica com que a negritude de Machado de Assis foi descartada por nossas elites que, para ofertar-lhe o reconhecimento a um talento que não podia ser negado, teve que o destituir das marcas de sua negritude, decretando, como o fez Olavo Bilac: ‘‘Machado de Assis não é um negro, é um grego”. De outro modo estigmatizou-se o esmero simbolista de Cruz e Sousa. A brancura e alvorização presente em seus versos foram interpretados como um doloroso esforço de branqueamento que a sua arte representaria, expressão do recalque do poeta em relação à sua cor. Uma interpretação que estigmatizou Cruz e Sousa por décadas como paradigma da auto-negação racial, cuja desconstrução deve-se aos poetas negros contemporâneos. Recusando a interpretação dos seus críticos brancos, os poetas negros revisitam Cruz e Sousa e identificam o dilema que sua poesia abarca: ‘‘Não é o da adesão a uma etnia considerada superior, porém um dilaceramento entre duas que solicitam o poeta e que o estraçalham”. Talvez essa interpretação da obra de Cruz e Sousa seja a síntese mais perfeita do dilema brasileiro, que ganha dramaticidade na existência e permanência entre nós de uma Europa e uma África que não conseguem conviver harmonicamente nem se separar.

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