Primeira negra a se graduar no curso de artes cênicas da Universidade de Brasília, escritora, poeta, mãe e militante, Cristiane Sobral comemora 20 anos do primeiro espetáculo profissional
Por Isabella de Andrade , do Correio Braziliense
Há 20 anos, a atriz e poeta Cristiane Sobral se graduava como a primeira negra em artes cênicas na Universidade de Brasília. O marco serviu para fortalecer o momento de ruptura em um espaço cultural e educativo tradicionalmente elitizado. Com sorriso amplo, olhos firmes e palavras fortes, Cristiane percebeu que poderia representar uma transformação em si e para os outros corpos negros vindouros.
Enquanto artista, a militância aparece como impulso entre versos, textos e cenas. “Eu milito com a minha existência e permanência no meio literário e teatral onde sou sempre minoritária, mulher e negra, a exceção que desafia a regra”, destaca.
O teatro e a literatura criaram outros sentidos para sua própria existência, que passou a ser ocupada por um espaço de invenção, potência e denúncia. Para ela, a palavra tem poder e pode ser usada como arma a nosso favor, combatendo paradigmas. Cristiane incentivou a certeza de escolha pelo trabalho cênico ou poético em outros estudantes, inspirados em sua trajetória. “O meu ingresso na universidade levou comigo outras estéticas oriundas das culturas populares, outros saberes, a minha ancestralidade, outras temáticas para o universo criativo produzido naquele espaço até então.”
Cristiane foi impulsionada quando escutou pela primeira vez que no teatro poderia ser o que quisesse, algo que em sua realidade não lhe era ofertado. “Estava ali uma oportunidade para ter lugar de fala, para contar a história do povo negro e do povo brasileiro a partir de outro ponto de vista, de construir outros cenários de realidade”, afirma. Para ela, a palavra é sagrada e profana nos espaços cênicos e literários, o que torna essas contradições e paradoxos ainda mais fortes.
Caminhos
A escrita lhe ensinou a ressignificar a dor pelo saber e chegou à sua vida aos 7 anos, depois da morte de sua mãe. No papel, Cristiane escreve, reescreve e reinventa a própria trajetória. Em seu bairro, a artista nunca conheceu nenhuma mulher escritora nem atriz e conheceu poucas pessoas que cursaram o ensino superior.
Quando optou por esse caminho de luta, consciente de suas escolhas, entendeu que ser atriz-professora-escritora-mãe-militante desenharia seus horizontes pessoais e profissionais. “A escrita me levou a ocupar espaços antes interditados, a ter uma melhor qualidade de vida e a alimentar os sonhos de um tempo melhor para nós.”
Para a autora, a militância, constante em suas produções criativas, é um ato coletivo, social, um compromisso. Além disso, um diálogo permanente, uma visão de mundo para contribuir nessa sociedade, para que seja mais justa, mais progressista. “Não é uma militância pelo povo negro apenas, é por todosnós, pelo nosso povo brasileiro. Eu milito contra o racismo ao pronunciar e reverenciar as mulheres negras que me antecederam, ao inserir o meu corpo e a minha arte em espaços de exceção onde a nossa escrita ainda não é visível.”
A militância literária aparece como possibilidade de existir e lutar para construir uma carreira de êxito de forma a desafiar estatísticas e trazer outros corpos negros para os espaços enriquecendo e tornando mais rico e diverso o teatro e a literatura nacional. O foco central de sua produção criativa é a experiência humana.
Cristiane gosta de contar histórias, seja no teatro seja na literatura. A essência é falar e experimentar a estética, a ética, o corpo, o gesto, a vida, o cotidiano, os paradoxos da existência, as subjetividades e os feminismos, a ancestralidade, os filhos, a maternidade. “São temas que me permitem construir vozes múltiplas, tridimensionais, sem maniqueísmos de mal e bem, além deles”, destaca.
Cristiane, que viveu no Rio até os 16 anos, conta que sentiu mais liberdade para criar em Brasília, sem a pressão de entrar em grandes emissoras ou grupos de teatro. “Eu me recordo que os convites surgiam para filmes com temática sobre escravidão, pequenas figurações. Eu sempre dizia aos produtores: não me ligue apenas para papeis para atrizes negras, me ligue para qualquer papel, eu sou atriz.”
Cristiane Sobral: poesia, desde o início da carreira(foto: Arquivo pessoal)
Celebração
Para comemorar essa trajetória, Cristine Sobral remonta, em 2018, o primeiro espetáculo profissional da carreira: Uma boneca no lixo, com dramaturgia própria e direção de Hugo Rodas. Ele foi criado durante seu último semestre de graduação, em uma época que não existia um teatro, apenas uma sala de ensaios no departamento de teatro da universidade.
“Eu me lembro que na época, eu cheguei a pular o muro de madrugada para poder ensaiar, porque era o único horário vago. Também ensaiávamos no terreiro de candomblé da Mãe Bete, em Taguatinga, pois os músicos do Asé-Dudú eram chefiados pela Betinha, percussionista, filha da mãe Bete”, conta a atriz.
Em cena, no monólogo musical, Cristiane discute a temática da diferença em um país multicultural. O texto do espetáculo será também publicado pela escritora, que produz atualmente seu primeiro livro infantil, em parceria com a filha, Ayana Thainá, de 7 anos. O ponto de partida da peça é a estória de um bebê negro encontrado por uma enfermeira japonesa numa lata de lixo, na periferia da Grande São Paulo.
A autora lembra que, depois de vinte anos, o texto permanece atual, e as questões abordadas continuam na ordem do dia. O racismo, o machismo, a exclusão social, a intolerância religiosa, as questões de gênero ainda não foram vencidos. Sendo assim, é preciso resistir e persistir.
(foto: Arquivo pessoal)
NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS
Cristiane Sobral
Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito
Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito
Depois de ler percebi a estética dos pratos
A estética dos traços, a ética, a estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
Mãos bem mais macias que antes
Sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Agora que comecei a ler quero entender
O porquê, por quê? E o por que
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar…
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros
Ah, esqueci de dizer
Não vou mais
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere
Você nem me chame
Não vou
De tudo o que jamais li
De tudo o que jamais entendi
Você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
Não tocarei no álcool
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
Meu tênis do seu sapato
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura
Sendo assim, não lavo mais nada, e olho a sujeira
No fundo do copo
Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo
Em letras tamanho 18
Espaço duplo
Aboli
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata
Cozinhas de luxo
E jóias de ouro
Legítimas
Está decretada a lei áurea.
Ref: Sobral, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. Poesia. 2017. 3ª ed. revisada e ampliada. Ed. Garcia, Brasília.