Alerta máximo na educação: o que há por trás da violência nas escolas?

A cada noticiário de violência que tem como cenário a escola, a sala de aula, é como se a sociedade, como que numa amnésia coletiva, passasse a ver o fato como episódio novo isolado, uma excepcionalidade desconectada de um contexto sócio político em uma realidade a qual muitos demonstram a mais completa alienação. Logo aparecem as justificativas nos campos moral, religioso (em perspectiva da crença hegemônica), psicológicas com esvaziamento de conceitos e, mais uma vez, se perde a chance de colocar na agenda nacional pautas importantes e urgentes, como educação antirracista e enfrentamento à cultura dos ódios plantados nos últimos anos como parte do projeto de poder que a extrema direita, tanto a nível internacional como nacional, tenta emplacar. 

Para profissionais da educação que tem no cotidiano os “pés no chão da escola” essa violência anunciada como fenômeno não é uma novidade, ao contrário, é o auge de um processo que vem se desencadeando há pelo menos uma década e se associa ao movimento político que insuflou determinados estratos da sociedade, em especial a classe média, a levantar bandeiras moralizantes e descoladas da estrutura desigual e racializada, que nos constitui como nação. Os brasileiros indignados com a corrupção em 2014 passaram a ver políticas públicas de distribuição de renda e inclusão social como gastos desnecessários reivindicando até mesmo a privatização de serviços públicos lidos como precários e dispendiosos. Para esta parcela da sociedade inebriada com o discurso neoliberal meritocrático “o povo que se exploda” tornou-se a máxima e, nessa direção do ódio de classe, o ódio racial, ganhou mais intensidade, afinal pobres são quase todos pretos.

O discurso político que, em 2018, produziu o resultado eleitoral desastroso chegara à escola como rastilho de pólvora colocando na mesma bandeja culto às armas, fanatismo religioso, negacionismo, relativização do racismo e do machismo que matam, desvalorização da atividade docente, uma vez que professores passaram a ser vistos como meros doutrinadores enquanto figuras da internet, youtubers, sem nenhuma formação, passaram a ser aclamados como portadores do substrato da verdade. Famílias tornaram estudantes seus agentes numa patrulha ideológica implacável, arbitrando no fazer pedagógico, determinando a retirada de materiais didáticos considerados “ideológicos”, realizando o caça às bruxas aos professores e professoras identificados como “esquerdistas”.

 Profissionais que não prescindem de elementos como leitura da realidade social e criticidade na análise dos conteúdos sofreram, nas escolas privadas, a perseguição das famílias bolsonaristas levando a demissões e campanhas odiosas para que não se recolocassem no mercado de trabalho. Na rede pública, onde a maioria dos estudantes são negros e periféricos, portanto alvo das violências, foi feita uma lavagem cerebral eficiente ao ponto de tais sujeitos serem convencidos a não ceder a um vitimismo e a combater discursos de professores de Humanas que, supostamente, os colocavam nesse lugar. 

Se me permitem um relato pessoal, no fatídico 2018, numa aula com a temática nazifascismo um aluno negro, trabalhador sub-remunerado de um mercado no bairro em que mora, evangélico, levantou-se e, diante de todos, disse que não iria à escola para ouvir mentiras num livro didático “provavelmente escrito por um petista” proferidas por uma professora esquerdista e abandonou a sala. Semanas antes este mesmo aluno fez uma defesa do proprietário do mercado endossando o discurso de que “era muito difícil ser patrão neste país” e que achava o salário-mínimo um valor alto demais para um empreendedor pagar aos funcionários. Desde então parte da minha esperança em relação à educação se esvaiu. Os alvos do discurso de ódio tendo na escola pública um espelho quebrado.

A banalidade do mal, conceito desenvolvido pela filósofa e teórica judaico-alemã Hannah Arendt segue de mãos dadas com a necropolítica, conceito cunhado pelo filósofo, teórico político, historiador e intelectual camaronês Achille Mbembe. Nessa lógica o “deixar morrer” não é apenas aceitável como naturalizado. Porém não para todos os corpos. O corpo “matável” é aquele que está em risco de morte a todo instante devido ao critério definidor primordial da raça. Como vivemos uma época de normalização de comportamentos antiéticos, a junção desses conceitos produz uma fórmula altamente violenta e esta violência encontra nos jovens e adolescentes, expostos a conteúdos nefastos das profundezas do mundo virtual, a dark web, seus agentes e principais vítimas. 

Quem será por nós, da educação? Quantas tragédias teremos que assistir para que a sociedade compreenda que erva daninha não pode encontrar solo fértil? Quantos corpos sairão sem vida da escola, espaço que deveria ter, justamente, na vida sua principal bandeira? E quanto ao antirracismo, o que falta para que se transforme no eixo central da Educação?

Perguntas de uma professora preta, das humanidades e com medo, muito medo.


*Joselice Souza é professora da Educação Básica ( Sec-BA) e do Ensino Superior atuando nas rede pública e privada em Feira de Santana-Ba, Mestra em Educação ( PPGE-UEFS), militante feminista antirracista. (@profjosisouza ).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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