Antropólogo

Exatamente três dias após a aprovação na Comissão de Constituição e Justiça da PEC 171/93, que versa sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, o menino Eduardo de Jesus Ferreira, 10 anos de idade, foi assassinado no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. Enquanto brincava na porta de sua casa, Eduardo foi atingido por um tiro na cabeça. A tragédia, que a PM do Rio diz estar ainda sob investigação, ocorreu durante uma série de operações no Complexo do Alemão que objetivavam pacificar (embora já ocupado militarmente desde 2012) o complexo de favelas, classificado há duas semanas pelo governo do estado como uma ocupação “onde há resistência do tráfico e risco para a ação da polícia”

por Alexandre Branco Pereira  via Gest Post para o Portal Geledés

O governo do estado do Rio de Janeiro implementou 38 Unidades de Polícia Pacificadora desde 2008, quando do início do projeto. A primeira UPP foi instalada no morro Santa Marta, localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro (e bem próxima ao Palácio da Cidade, sede do governo municipal). Uma pequena pesquisa sobre a comunidade, cuja ocupação se inicia nos anos 1940, mostra que a UPP foi uma das primeiras presenças estatais nas vielas (que ganharam asfalto somente após a ocupação militar, em 2008). Santa Marta, entretanto, é o projeto piloto. Há quem considere o modelo como a “favela vitrine” do governo do estado (e há também quem considere que as obras de infra-estrutura realizadas na favela tiveram o objetivo de viabilizar a ocupação).

Entretanto, se formos analisar o Complexo do Alemão, onde Eduardo foi assassinado pela Polícia Militar que pacifica, os dados deixam de ser publicitários. O complexo de favelas possui 13 bases de UPP, enquanto conta com apenas uma escola de nível médio e uma creche municipal, mas nenhuma escola de nível fundamental. A falta de água é constante em alguns pontos, a captação e o tratamento do esgoto não atinge toda a população (sendo o morro do alemão considerado “potencial área de alto risco para o desenvolvimento de doenças infecciosas de veiculação hídrica”). Postos de saúde são raros, hospitais não existem. Em favelas não pacificadas, o cenário se repete. O Complexo da Maré, próximo alvo do projeto das UPPs, conta com apenas duas escolas de ensino médio.

Isso sem contar as outras inúmeras violações de direitos civis que não são notícia quando não ocorrem no “asfalto”. Invasões de domicílio, abordagens vexatórias, truculência e até casos de furto são reportados por moradores comentando a abordagem policial. O Estado se mantém ausente da vida social da comunidade durante mais de meio século (ou mais, em alguns casos), e quando chega aos termos com a intenção de exterminar o poder paralelo que se criou em seu vácuo, o faz como sempre fez: criminalizando a pobreza e militarizando uma questão social. Nunca se sistematizou uma política pública de atenção sanitária às favelas em questão, por exemplo, mas há uma política pública sistematizada e em execução de ocupar militarmente essas favelas (o que diz muito sobre a intencionalidade do aparato estatal). De zonas abandonadas à própria sorte para uma zona de exclusão de direitos.

Não é um acontecimento sem paralelo, mesmo fora do Brasil. Michael Brown, estadunidense negro de 18 anos, foi morto ano passado na cidade de Ferguson, subúrbio de Saint Louis, no estado do Missouri. Relatos dão conta de que Brown tinha as duas mãos levantadas e estava desarmado. Ou Eric Garner, também estadunidense e negro, que gritou onze vezes que não conseguia respirar para o policial que o estrangulava antes de morrer (enquanto a ação era filmada). Garner chegou a dizer aos policiais que “estava cansado de ser abordado” pela polícia de Nova Iorque.

Há também o maior caso de supressão de direitos humanos básicos através do racismo e da ocupação militar da atualidade: a ocupação ilegal de Israel sobre os territórios palestinos. Não há maioridade penal para os ocupados: Israel é o estado que mais mantém crianças em situação de cárcere (a maioria árabes). Além disso, existem as barreiras para movimentação de árabes (muros, checkpoints), a restrição do acesso a bens de necessidade básica, como água, comida, medicamentos e equipamentos médicos, demolição de residências sem aviso prévio, confisco de terras, prisões arbitrárias e assassinatos.

Não à toa, durante os protestos ocorridos nos EUA pelas mortes de Eric Garner e Michael Brown, se viam cartazes comparando Ferguson e Palestina. Na Palestina, ocorreu o mesmo: várias manifestações de apoio aos levantes estadunidenses. Em Ayotzinapa, no México, onde 43 estudantes foram assassinados em uma cooperação entre Estado (através da polícia) e narcotraficantes, Palestina e Ferguson também foram e são lembrados. Edward Said, intelectual palestino, diz:

“O mundo não branco tem consciência de que a tendência política moderna de governar grupos de pessoas como populações removíveis, silenciosas e politicamente neutras tem uma ilustração específica naquilo que aconteceu com os palestinos – e naquilo que está acontecendo com os cidadãos de colônias que se independentizaram recentemente e agora são dominadas por regimes militares antidemocráticos.” – Edward Said, “A questão da Palestina”, 1992.

As polícias pacificadoras são polícias com a incumbência de criar zonas de exclusão de direitos. Se ampliarmos a análise, a polícia, mesmo não militarizada como nos EUA, cumpre esse papel. O Estado brasileiro, como aponta Said, segue a tendência política moderna (moderna?) de considerar grupos socialmente marginais (seja em Belo Monte, em Teles Pires, no sul da Bahia, em Mato Grosso do Sul, nas favelas, ocupadas ou não, cariocas ou não) como populações removíveis, silenciosas e politicamente neutras. Não podemos deixar que o extermínio de Cláudias, Amarildos, Douglas, Eduardos, Garners, Browns, e outros tantos nomes que sangraram pelo caminho, sejam assassinados em nosso nome.

Em tempo: a resposta do governo estadual do Rio aos protestos no Alemão pela assassinato de um menino de 10 anos é intensificar a ocupação militar.

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