“Aqui para”: a primeira condenação judicial por racismo estrutural

Miguel morreu em 2020 ao ser abandonado em um elevador pela patroa de sua mãe. Agora, Sari Corte Real foi condenada pelo Tribunal Superior do Trabalho pelo racismo estrutural que permeou todas as relações trabalhistas envolvidas no caso

A Emenda Constitucional n.º 72, mais conhecida como PEC das Domésticas, foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff no dia 1 de junho de 2015, e publicada no Diário Oficial da União no dia seguinte. O parágrafo único de legislação garantiu à classe dos trabalhadores domésticos os direitos trabalhistas que já abrangiam praticamente todas as categorias profissionais, menos essa.

Segundo Thales Vieira, fundador e coordenador executivo do Observatório da Branquitude, em entrevista ao Diplomatique Brasil, a Constituição de 1988 é uma das “mais avançadas do mundo até hoje”, mas isso não impediu que o trabalho doméstico fosse ignorado em sua elaboração. Por quê? O trabalho doméstico “talvez seja o melhor símbolo do que são as relações raciais e o racismo no Brasil”, um portal para o Brasil colonial onde a lógica da casa-grande é continuada em prédios com apartamento de serviço. 

Cinco anos após a publicação da Emenda Constitucional n.º 72 no Diário Oficial da União, uma empregada doméstica saiu de sua casa para trabalhar em um apartamento num condomínio de luxo em Recife, no Pernambuco. No meio da pandemia de Covid-19, sem creches abertas, Mirtes Renata Souza precisou levar seu filho, Miguel, de 5 anos de idade, para o trabalho. Enquanto Mirtes passeava com o cachorro de seus patrões, Miguel caiu do 9º andar do prédio após ser abandonado sozinho no elevador pela empregadora de Mirtes, Sari Corte Real. 

Não exatamente empregadora, como foi revelado após a morte de Miguel. Sari é a esposa de Sérgio Hacker, ex-prefeito de Tamandaré, cidade localizada a cerca de 100 quilômetros de Recife. Tanto Mirtes quanto Marta, sua mãe, foram contratadas como funcionárias da prefeitura do município onde Hacker, na época membro do PSB, era prefeito, mas trabalhavam em sua casa. Essa e outras irregularidades trabalhistas levaram a uma condenação histórica do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que se baseou no conceito de racismo estrutural, algo que nunca havia acontecido no Judiciário brasileiro. 

Racismo estrutural no caso Miguel 

A morte de Miguel, em 2020, chocou o país. Poucos dias após a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, e a onda de protestos antirracistas que se espalhou por lá, grande parte da população brasileira viu nisso não um acidente, e sim uma morte causada pelo racismo. “É importante ter mobilizado o conceito de estruturalidade para falar sobre isso, porque não foi o caso que a Sari Corte Real chegou para a Mirtes e disse ‘sua macaca’. Se fosse isso, era um racismo diretamente colocado ali, muito fácil de identificar”, explica Thales. Na morte de Miguel, o racismo tomou outras formas, permeando as relações trabalhistas e a desatenção que o garoto recebeu. 

O racismo estrutural, como explicou, em entrevista ao Diplomatique Brasil, Carol Canegal, doutora em ciências sociais e coordenadora de pesquisa do Observatório da Branquitude, atravessa a sociedade em instituições, mas também nas subjetividades de cada pessoa. O privilégio branco de ter alguém trabalhando na sua casa durante a pandemia, saindo para passear com seu cachorro por você, arriscando uma contaminação com coronavírus é só uma das muitas maneiras como o racismo se manifestou no caso Miguel

“Tinha essa estrada que envolveu peculato, improbidade administrativa, superexploração de mão de obra e culminou na morte de um menino. Uma estrada de privilégio e racismo que culminou nisso”, afirma Thales.

A relação histórica do trabalho doméstico com a população de mulheres negras também é um aspecto essencial de como o racismo estrutura relações de trabalho e serviço até hoje no Brasil. Na sentença do TST sobre o caso, o juiz argumenta que a relação restaura o período colonial. Thales explica: “o que está nas entrelinhas é que, para pessoas brancas, as trabalhadoras domésticas são propriedade, ainda”. No processo, Sérgio Hacker alegou que Mirtes e Marta não eram suas empregadas, e sim do município, e ele só havia “desviado as trabalhadoras para trabalhar em sua residência”, fazendo um uso impróprio de recursos públicos e, como afirmou o ministro do Tribunal Superior do Trabalho José Roberto Freire Pimenta, agindo “como se ainda vivêssemos no período colonial”. 

Quando se usa o conceito de racismo estrutural, também está se falando de como as instituições perpetuam esse racismo, e o Judiciário brasileiro é um exemplo constante disso. “O sistema de Justiça, dos três poderes, é o menos democrático, racialmente falando […] hoje o sistema de Justiça é uma máquina de prender gente negra e de atribuir privilégio a pessoas brancas”, afirma Thales. Porém, foi dessa mesma instituição que saiu a sentença trabalhista histórica baseada em racismo estrutural. “A gente tá falando de uma das instituições fundamentais para o funcionamento do sistema de Justiça reconhecendo textualmente, numa sentença, o privilégio branco e o racismo estrutural como a base desse dano”, explica Carol. A estrada que levou até a morte de Miguel foi interrompida pela sentença. Segundo Thales, “se a Justiça fecha os olhos para isso, a Justiça é continuação dessa estrada. Se a Justiça não condena da forma como condenou, ela é a continuação dessa estrada de racismo e de privilégio branco”. 

Jurisprudência inédita 

A importância dessa decisão do TST, segundo Thales, é “romper essa lógica [do racismo estrutural], falando ‘aqui para’”. A sentença “histórica, mas ainda muito episódica”, abre uma jurisprudência que pode ajudar outros juízes a embasar decisões antirracistas no futuro. Carol, citando a psicóloga Lia Vainer Schucman, explica que “o bom funcionamento das instituições brasileiras, como elas foram assentadas e estruturadas, sempre resulta em racismo”. Com essa decisão, o TST se volta contra a própria lógica institucional, e contribui para acabar com uma estrutura que condena e mata pessoas negras por serem pessoas negras. 

“Tem um debate importante sobre racismo estrutural que diz que o problema de você considerar racismo estrutural é tirar a agência das pessoas, então é como se não tivesse autoria, como se o racismo fosse uma nuvem acima da cabeça de todos os cidadãos, sem autoria, imutável, sem autor. Toda pessoa branca, e isso quem fala é a Sueli Carneiro, é herdeira de um grupo de privilégios que vem através da sua cor, e todas as instituições que são brancas também são herdeiras desse privilégio, só que nem as pessoas ou as instituições precisam ser signatárias desse privilégio, precisam seguir assinando ele pelo resto da vida. O que o TST fez nesse caso foi romper com essa lógica”, diz Thales. 

Segundo Carol, o que está em jogo nesse julgamento é um embate entre um Brasil mais igual, de relações horizontalizadas, sonhado na Constituição de 1988 e cobrado por organizações como o Observatório da Branquitude, e “um Brasil do passado que não quer passar, que segue insistindo em permanecer e se reproduzir”. Essa decisão do TST, uma instituição do Estado brasileiro, reconhecendo o racismo estrutural e, segundo Thales, “mostrando que as relações espúrias de trabalho, a improbidade administrativa, o peculato, a superexploração da mão de obra estão costuradas com o que aconteceu com o Miguel”, pode ser mais um prego no caixão do zumbi do Brasil colonial, que ainda insiste em acordar. “A máquina é poderosa e muito forte, mas a gente aposta nessa brecha que se abriu, nessa fenda na estrutura”, conclui Carol. De fenda em fenda, o muro do racismo estrutural vai caindo. 

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