Arte para não morrer sem sonhos

A propósito dos 70 anos de Itamar Assumpção 

Por  Maria Nilda de Carvalho Mota, enviado para o Portal Geledés 

Maria Nilda de Carvalho Mota (Foto: Renata De Oliveira Armelin/Sesc)

O músico Itamar Assumpção (1949-2003) teria completado 70 anos em 2019. O documentário “Daquele instante em diante” (direção Rogério Velloso, 2013) retrata de forma lírica e assertiva um tanto da sua trajetória de artista: a inquietação profunda com a vida, a genialidade mal contida nos rótulos de “gênio marginal”, homem negro e pai de família. Itamar Assumpção era diamante não polido, como a poesia que não é flor que se cheire e, por isso, os jornais sistematicamente a evitam. No documentário, sua filha Anelis Assumpção, também cantora, relata que,em muitos momentos da vida o pai só queria um pouco de paz, traduzida em reconhecimento artístico e estabilidade financeira. Mas essa “paz” não lhe deu o ar da graça.

Ainda a propósito dos 70 anos de Itamar Assumpção – colóquio em homenagem ao artista, realizado pelo Instituto de Estudos Brasileiros – IEB – da Universidade de São Paulo questinou-se: será que a sociedade brasileira, hoje, seria capaz de enxergar outros Itamares, nas mulheres e homens artistas, de origem pobre e negra que circulam pelos circuitos ainda marginais da atualidade? Ou será que as  grandes mentes permanecem condenadas ao póstumo, sobretudo a depender de sua origem social, cor de pele e/ou posicionamentos políticos anticapitalistas? Ou será que reproduziríamos – estamos reproduzindo – o desprezo por aqueles e aquelas artistas cuja sinceridade, força e profundidade nos demovem de nosso falso conforto? 

Nesse sentido, não nos faltam exemplos: a cantora e compositora baiana Luedji Luna é, para grande parte da comunidade negra, uma rainha viva, vigorosa e atuante na arte brasileira. Sendo assim, quando então a saudaremos com a devida reverência (nós, a sociedade brasileira, como um todo e não apenas segmentos)?

O samba e o Hip Hop, a literatura e a academia também – e não por coincidência – trazem sua larga cota de genialidade não dividida. Geralmente, isso é fardo de  gente preta e/ou favelada que não possui os meios de produção para além de seu próprio corpo, suas vozes e, por baixo, as almas brilhantes e multicolores: Clementina, Carolina, Cartola, Pixinguinha, Os originais do samba, Geni Guimarães, Sabotage… acrescentem mais nomes à lista…

Apesar de habitarmos essa “fábrica de engolir sonho de artista”,  que é o mundo branco e capitalista no qual vivemos, temos que ser capazes de reconhecer os diamantes não polidos. Devemos ser capazes de saudar as rainhas viventes, de seguir as lideranças políticas, intelectuais e artísticas que ainda estão vivas, com os pés no chão e os sonhos tão altos quanto  as luas mais (im)possíveis.

 

A palavra lavra de Renan Inquérito

Renan Inquérito (Foto: Marcio Salata)

Na esteira dos viventes que se sobressaem pela capacidade crítica, subversiva, amorosa e demolidora de mundos caminha o Renan Inquérito. Com 20 anos de estrada,  prêmios recebidos, sete discos gravados e muita, muita, correria, o poeta, músico, acadêmico e militante Renan Inquérito enfrenta à custa de muito trabalho, o desmonte da educação e da cultura promovido pelo governo Bolsonaro e sua trupe de mal-amados. Esse enfrentamento se dá pelas vias poéticas, musicais, intelectuais e políticas, lançando músicas em parceria com diversos atores da cena cultural nacional e internacional, ou realizando atividades culturais em praças, cadeias, núcleos de medida socioeducativa e outros espaços, a princípio, pouco afeitos à poesia.

Mas a poética de Renan é também do povo e, como tal, capta suas alegrias e misérias. Renan Inquérito, o “poeta-doutor”, conhece a geografia da alma humana, se sintoniza com suas dores e mesmo de dentro do ambiente doméstico, na concretude dos dias, lava louça e faz poesia, namora e arquiteta planos de intervenção política, canta e socializa os sonhos.

Renan é formado em geografia pela Unicamp e doutor pela UNESP, mas sua vida acadêmica, como a de muitos e muitas artistas periféricas não se limita à ciência – o que demonstra uma tendência da população preta, pobre e periférica, ao ocupar os espaços das universidades. Muito pelo contrário: a ciência desenvolvida em suas pesquisas se coloca, como efetivamente deve ser, a favor da vivência comunitária, do fortalecimento do povo, da multiplicação de saberes.

Entretanto, “saiba você que nem tudo são flores” no jardim que ele vive: como todas as personalidades aqui citadas, e muitas outras que deixamos de citar, por economia de tempo e espaço, Renan ainda precisa se debater contra a falta de investimento em cultura e lazer, contra a aposta do atual governo de que arte é mera  “perfumaria”, ciência é desperdício de tempo e vida é acessório permitido apenas aos mais ricos e canalhas, preferencialmente heterossexuais, que fique bem dito.

Há, por isso, que se trabalhar para viver.

Há que se resignar para fazer arte.

Há que se morrer para alcançar a vida eterna – destino das grandes mentes e corações que circularam e dos que ainda circulam entre nós, hoje, na Terra. Destino esse que, por força do capitalismo, do racismo, do machismo e outros ismos, relega tais personalidades à condição de “póstumos”, quando todos e todas, por direito, deveríamos ter acesso a suas produções; quando todos e todas  deveríamos viver com dignidade e paz, traduzidos, que se repita, em reconhecimento artístico (para artistas) e estabilidade financeira (conforme cada necessidade e respeitando as habilidades individuais).

Até quando precisaremos morrer para só então sermos lembradxs?

 

Seus rap “foi cotonete pra vários muleke”

 

20 anos de carreira não é pouco, mas é bem menos da metade do que esperamos das grandes mentes e corações do  Hip Hop brasileiro. Graças à autoconsciência desse rapper, tivemos este ano a oportunidade de rever nove músicas regravadas, resgatadas da linha do tempo do poeta e redistribuídas para as nossas. 

“Fotossíntese (20 anos luz)” é o nono trabalho de Renan Inquérito, disponibilizado um a cada mês, este é o fechamento de mais um ciclo e abertura dos próximos, esperamos. No clipe, o poeta canta e planta em nós o desejo de prosperar nas lutas e inquirir, buscar o melhor que a vida pode nos proporcionar:

“A vida é coragem e medo

Esse é o segredo

Pedala e cai

Levanta e vaii”

 

Vamos à Vida!

 

Para saber mais, um pouco de cada coisa

Links:

Fotossíntese (20 anos luz)

Parada Poética https://www.facebook.com/ParadaPoeticaNO/

Daquele instante em diante. Dir. Rogério Velloso (2013)

 


Álbuns:

Mais Loco que u Barato (2005)

Um Segundo é Pouco (2008)

Mudança (2010)

Corpo e Alma (2014)

Corpo e Alma REMIX (2016)

Tungstênio (2018)

Boomerang (2019)

 

Livros 

#PoucasPalavras (2011);

Poesia Pra Encher a Laje (2016)

 

Produção científica

 

Tese de Doutoramento: O relevo da voz: um grito cartográfico dos saraus em São Paulo. Rio Claro, 2019

 

Dissertação de Mestrado: Território usado e movimento hip-hop: cada canto um rap, cada rap um canto. Campinas, 2012.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Antônio José Nunes Garcia: um jornalista negro nos tempos do Império (1813-1894)

Através de uma denúncia feita pelo abolicionista José do...

Jornalistas negras para você acompanhar 

Seja na internet ou  na televisão, é notável o...

Quem tem medo de literatura negra brasileira?

Palavrões, palavras de baixo calão e descrição de cenas...

Promessa de vida

O Relatório do Desenvolvimento Humano, divulgado nesta semana pelo...

para lembrar

Thriller, clássico de Michael Jackson, será exibido em IMAX nos EUA

Videoclipe de 1982 chegará às telonas junto com sessões...

Jaden Smith anuncia que está namorando rapper famoso acusado de homofobia

Jaden Smith contou a novidade durante o show e...

Liniker: ‘O afeto é uma força política necessária’

Três anos (e três turnês na Europa) depois do...

DJs indígenas militam em favor de igualdade racial e de gênero

Cris Pantoja e Renata Machado caíram na profissão de...
spot_imgspot_img

Alaíde Costa e Ludmilla são exemplos relevantes de mulheres que venceram preconceitos no mundo da música

Hoje, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, é dia de saudar Alaíde Costa e Ludmilla, duas cantoras e compositoras brasileiras, ambas cariocas e ambas negras, que venceram...

Aretha Franklin: ícone da música e dos direitos civis que fez história com sua força cultural

Direto de Memphis para o mundo, com seu talento e brilho, a rainha do soul também alcançava o gospel, R&B e o jazz, de...

MinC seleciona projetos de hip-hop inscritos no Prêmio Cultura Viva

A Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura iniciou o processo de seleção das 2.671 iniciativas inscritas no edital do Prêmio...
-+=