As vozes das mulheres negras brasileiras contemporâneas

“Olhos de azeviche” reúne textos de autoras como Ana Paula Lisboa e Conceição Evaristo

Por POR TOM FARIAS, do O Globo 

A escritora Ana Paula Lisboa é uma das autoras presentes na coletânea “Olhos de azeviche” – Ana Branco / Agência O Globo

A ideia de reunir em livro textos de autores diversos e de padrão narrativo diferente nem sempre ofereceu bons resultados conceituais, ainda mais quando os autores trazem consigo grande cabedal de experiências, e essas, no geral, se refletem em suas produções. Em “Olhos de azeviche”, no entanto, nos deparamos com o oposto dessa trajetória. A bela coletânea reúne dez das melhores prosadoras negras brasileiras, que contextualizam situações de vida que vão desde dramas existenciais, do racismo ao sexismo, passando pelas questões de gênero, de raça e credo. Os 20 contos e crônicas curtos, escritos por mãos literalmente calejadas, caso da experiente escritora mineira Conceição Evaristo, como também por aquelas que ainda estão praticamente se iniciando no competitivo universo da literatura, a exemplo da jovem blogueira Taís Espírito Santo, não competem entre si.

Nos casos mencionados, embora o caminho “da escrita” percorrido pelas mesmas conte e muito, notamos um referencial nessas autoras que marca de forma preponderante as suas narrativas: a quebra de paradigma como pretexto para revelar o empoderamento da mulher negra no campo da atividade literária, como no passado ocorreu com Carolina Maria de Jesus.

Em se tratando dos tempos atuais, a contextualização projetada em “Olhos de azeviche” vem dizer para a sociedade o quão rica é a história narrada pelo prisma de vozes ocultadas ou relegadas do ponto de vista da luta de classes ou do edificante padrão social da beleza imposto por um país que parece se envergonhar de ser negro e misturado.

Assim, leituras como as das crônicas “Sobre os que juntam vinténs na microeconomia do carnaval”, de Cidinha da Silva, ou “A Pretinha e o Pretinho”, da própria Taís Espirito Santo, nos deixam a impressão da gritante existência de um choque de saberes e de dizeres, fosso que dita regras de comportamento, ao mesmo tempo em que inibe o pensar e bloqueia a pluralidade das ideias, principal arcabouço que sedimenta a inteireza de uma nação como o Brasil.

QUALIDADE

Nas vinte narrativas dessa nova antologia, uma coisa se constata logo à primeira leitura: a qualidade dos textos publicados, especialmente dos contos. Em “Guarde segredos”, por exemplo, a paulista Esmeralda Ribeiro faz o percurso do diálogo epistolar para falar, de modo bem saboroso, do romancista Lima Barreto. O mesmo pode-se dizer de “Arlinda”, de Fátima Trinchão (“Muitas foram as lutas, não poucas as batalhas, mas, era uma filha de Iansã, guerreira, altiva e por tão pouco não se deixava abater”), e de “Primeiras lembranças”, da excelente Geni Guimarães (“Minha mãe sentava-se numa cadeira, tirava o avental e eu ia, colocava-me entre suas pernas, enfiava as mãos no decote do seu vestido, arrancava dele os seios e mamava de pé”), além de nos defrontarmos, assim, com belas passagens em textos escritos também por Lia Vieira, Ana Paula Lisboa, Miriam Alves ou Cristiane Sobral (“Uma profecia de sua avó, benzedeira, pouco antes da morte, revelou que ela seria herdeira do seu dom de cura”).

Só isso já nos direciona para o acerto da edição de “Olhos de azeviche”, cujo alvo, pelo visto, foi o de criar mecanismos de desbloqueio da invisibilidade para as narrativas femininas de autorias negras. No contexto geral, sob a ótica de apresentar o conjunto dessas produções, os objetivos foram plenamente atingidos, demonstrando que, mesmo em um mercado tão disputado, seleto e competitivo como o do livro brasileiro, a inclusão e a diversidade são sempre bem-vindas e salutares.

*Tom Farias é jornalista e escritor, e prepara a biografia “Carolina”, sobre Carolina Maria de Jesus

“Olhos de azeviche”

Autor: Ana Paula Lisboa, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro, Fátima Trinchão, Geni Guimarães, Lia Vieira, Miriam Alves, Taís Espírito Santo.

Editora: Malê

Páginas: 152

Preço: R$ 40

Cotação: Bom

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