Atestado de africanidade

Análise do DNA mitocondrial revela origem que povo negro brasileiro não teve chance de conhecer: ‘Sou 100% balanta’

Por Flávia Oliveira, O Globo

Foto: Marta Azevedo

Das lacunas impostas às narrativas sobre a formação do povo brasileiro é particularmente cruel o desconhecimento da população negra sobre a própria ancestralidade. O cotidiano nacional é pontuado das receitas suculentas da nonna do amigo de infância. Natural ouvir falar da devoção a um santo católico da bisavó espanhola. Multiplicam-se as referências à disciplina herdada de antepassados alemães. Inveja-se, vá lá, o passaporte europeu viabilizado pela ascendência lusitana. Da africanidade, emerge o silêncio constrangedor. Aprendemos que negros escravizados puseram de pé o país, influenciaram a culinária, deixaram marcas na religiosidade, foram preponderantes na cultura. É legado tão rico quanto indeterminado. A origem negra, não raro, se apresenta pela pigmentação da pele. E só.

Gerações seguidas de afro-brasileiros cresceram sem fazer ideia do ponto de partida da saga familiar. Estava mergulhada nas trevas do desconhecimento até três semanas atrás, quando me foi entregue o tal envelope. A aventura começara seis meses antes, quando a equipe da série de documentários “Brasil DNA África” convidou para o exame que atestaria a africanidade. A coleta do material genético foi marcada para o 2 de novembro. O Dia de Finados, ironicamente, ganhava ares de renascimento.

Cinco meses se passaram até a marcação de novo encontro para, enfim, apresentação do resultado. O intervalo foi salpicado de curiosidade e especulação. Um parente distante mencionara a possível origem nigeriana de uma trisavó que, embarcada num navio negreiro, viera dar no Recôncavo Baiano. Lá foi escrava doméstica dos donos de um engenho de açúcar, reencontrou o companheiro do continente natal e deu início à linhagem em terras brasileiras.

O sábado de outono no Rio, 25 de abril, apenas começava quando a equipe de produção e o grupo de investigados se reuniu no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, que foi residência da família real. A sala ornada de peças da cultura e das religiões afro-brasileiras guardou a revelação. O teste MatriClan analisou a sequência do DNA mitocondrial, para identificar a ancestralidade materna. É uma marcação que, diz o laboratório, foi passada para mães e filhos da família nos últimos 500 a dois mil anos. O atestado de africanidade, no meu exame, deu 100% de certeza.

Assim, me descobri, no lado materno, oriunda do povo balanta, da Guiné-Bissau, país da África Ocidental também colonizado pelos portugueses. Até então, era tudo o que eu sabia sobre a região da qual sou descendente. Ninguém na família, em nenhum momento da vida, tinha ouvido falar dos balantas ou da Guiné-Bissau. Impossível não pensar na falta que faz aos brasileiros a valorização das origens negras e o ensino de História da África (previsto na jamais cumprida Lei 10.639/2003).

Os balantas, já descobri, compõem o maior grupo étnico da Guiné-Bissau. Representam de 25% a 30% da população do país, que só teve a independência reconhecida por Portugal em 1974. É o único povo dali a se organizar numa sociedade igualitária. “Não há poder central. Em cada tabanca (aldeia) existem anciãos, homens grandes que já passaram pela iniciação do fanado (ritual feito a cada dez anos). Eles detêm a autoridade, mas não há um chefe”, contou o padre italiano David Soccio, especialista na etnia, ao jornal português “Público”. Na língua local, balanta significa “aquele que resiste”. Está no DNA.

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Flávia Oliveira

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