BACURAU – Da resistência de um povo invisível

Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles

Enviado por Natália Bocanera Monteiro Latorre para o Portal Geledés

Minha fissura por cinema me permite agregar alguns filmes de afeto em minha vida. Filmes marcantes e poderosos que trazem a necessidade de diálogo, de reflexão, de compartilhamento de ideias, de divulgação. O desejo de compartilhar aquilo que, de tão bom, pode ter o poder de mudar e marcar a vida de outra pessoa também. É um anseio por fazer a outra pessoa sentir aquilo que você sente.

O mais recente filme de afeto da lista é Bacurau.

Imagem: Divulgação/Bacurau

Bacurau, além de poderosíssimo, é extremamente conveniente. E talvez sua conveniência, diante do cenário político brasileiro atual, onde se busca, de forma doentia, anular o povo como povo que é, dizimar sua identidade, sua saúde, seu lazer (repare, todos os seus preciosos direitos fundamentais), é que torne o longa tão significante, e provocador de tanto sentimento.

Sobre a trama, não há nada que pague o valor de apreciar esta obra prima sem spoilers. É uma experiência insana, pra não dizer menos. Portanto, esta leitura não é recomendável para quem ainda não contemplou o longa.

De forma muito simples, Bacurau é uma arte de resistência. É um filme complexo que reflete a força do ser humano perseguido e anulado quando encontra, na união e no amor, alternativas para se preservar.

A cidade fictícia de Bacurau é multifacetária e democrática. Como o Brasil em geral, nela habitam negros, brancos, homossexuais, heterossexuais, transexuais, crianças, idosos. Cada um de seus habitantes tem identidade e é respeitado como pessoa humana. Uma cidade que vive à margem do governo, mas que não permite que nenhum de seus habitantes seja marginalizado.

Desmistificando aquilo que grande parte da população brasileira não nordestina visualiza do sertão, Bacurau tem tecnologia, tem saúde, graças aos esforços de sua própria população. Tem Whatsapp, tem sinal de celular, tem carro de som, tem livros, tem projetor na sala de aula. Tem preservação de cultura e acesso à educação. Tem museu.

Só não tem água, e por motivos que não são revelados pela trama, notamos que onde antes havia uma barragem, há seca. E a motivação pela seca não é climática. A dificuldade de acesso à água notoriamente teve causa governamental, e a população, com muito custo, abastece-se através de caminhão pipa.

E quando um caminhão pipa aparece “todo cravado de bala”, e a cidade de Bacurau some do mapa, o clima de estranheza e suspense envolve o longa, que começa a se desenvolver (e envolver, e surpreender).

Como os próprios diretores destacaram em uma de suas manifestações coletivas, não há interpretação única aplicável à Bacurau. E também não cabe aos diretores explica-lo ao seu público. Faz parte da experiência a sensibilidade e forma de entendimento do espectador ao que lhe é mostrado.

Apropriação cultural. Perda de identidade. Desmoralização e descaracterização da pessoa humana. Desdém social. Desdém político. Apologia à violência.Caça e linchamento dos mais pobres. Reação. Bacurau pode ser entendido sob diversos aspectos. O que maravilhosa e brilhantemente os diretores preferiram mostrar sob a chocante e escancarada ótica literal daquilo que já ocorre com as camadas rejeitadas da população (principalmente a população negra): um grupo de privilegiados (aqui, no caso, estrangeiros, americanos-europeus, brancos), amantes de armas e da violência seletiva, praticando o esporte de exterminar aqueles que, se não para a exploração, não fazem
diferença na sociedade almejada. No mapa já não estão. Ninguém notará a diferença.

A diferença, entretanto, consiste na reação. O povo reage. O povo pacífico de Bacurau (a placa da cidade “se for, vá na paz” muito tem a dizer), cujo único contato bélico é guardado num museu, é racional, e é reativo. Luta para se auto preservar, luta por sua identidade e por sua vida. E essa não é uma atitude esperada das camadas marginalizadas da sociedade. Mas afinal, quem nasce em Bacurau nada mais é do que gente.

No mais, mais uma vez tratando de identidade, o longa brinca com a adoração a tudo que é estrangeiro (leia-se, europeu-americano), numa tentativa doentia de equiparação ao que se entende como sociedade civilizada ideal. E trata com a mesma moeda, em uma cena brilhante com a grande Sonia Braga, interpretando a médica Domingas, recebendo os “turistas” na cidade de Bacurau: recebe-os com mesa posta, guisado na panela, suco de caju, e ao fundo, “música americana”. Música que, na verdade, é britânica. No fim das contas, brinca o filme, é tudo igual.

A trilha sonora é um presente. Se a abertura do filme com “Não identificado”, de Gal Costa, traz um clima futurista à obra, o encerramento com “Réquiem para Matraga”, de Geraldo Vandré, te ajuda a digerir o choque que o espectador acabou de receber. As possíveis lágrimas no fim do filme (pelo menos essa foi a reação que tive) transmitem o turbilhão de sentimentos que ele causa. Ao mesmo tempo em que podem ser de esperança e orgulho de um povo que luta por sua preservação, são de tristeza pelas inúmeras pessoas desprovidas de identidade social que são ignoradas. Pessoas que, ao mesmo tempo que são anuladas, incomodam, e são linchadas e exterminadas, de forma literal ou não.

A reação da população de Bacurau, e o desfecho trazido pelo maravilhoso Lunga de Silvero Pereira, um herói cangaceiro, não é de orgulho. É de tristeza, diante da violência que se fez necessária. E a lindíssima canção de Geraldo Vandré encerra com louvor: “Vim aqui só pra dizer, ninguém há de me calar”.

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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