Você sabia que os egípcios eram negros? Aprendeu sobre História Africana na escola? Leu intelectuais negros na universidade?
O apagamento da produção de conhecimento negra, também chamado de epistemicídio, é uma das formas de invisibilização produzidas pelo racismo.
Em Black Is King, Beyoncé desafia as forças de morte impostas à cultura africana e mostra que, apesar de todas as tentativas de estigmatizar o que é negro como feio, ruim ou perigoso, nossa ancestralidade tem muito a nos oferecer.
O processo de conscientização racial não é indolor. Uma pessoa negra, que vive na diáspora africana, fruto do sequestro em massa que deu origem ao sistema escravocrata no mundo há séculos atrás, precisa descobrir sozinha qual caminho percorrido por seus ancestrais. Não aprendemos sobre os antigos reinos africanos, não sabemos as histórias de grandes líderes, de civilizações e de invenções produzidas pelo continente, não sabemos nem de onde nossos familiares vieram ou que nome possuíam antes de serem renomeados pelo catolicismo. Tudo que sabemos resume-se a chegada de pessoas como nós, em navios negreiros, tão insalubres quanto terríveis, matando pessoas como moscas, sabemos da pobreza de África depois do saque colonialista, das doenças que assolaram a terra-mãe já tão castigada… Nenhuma palavra sobre os conhecimentos astronômicos dos Dogon, nem do desenvolvimento da geometria no Antigo Egito. Não sabemos sobre o homem mais rico que já existiu — Mansa Musa! —, nem sobre as divindades antigas que nomeiam ricos conhecimentos sobre a natureza humana.
O que Beyoncé faz em Black Is King é essencialmente educar pessoas como ela, nascidas do cativeiro, sobreviventes do maior holocausto já cometido contra um povo sobre a face da Terra: a escravidão que vitimou milhões de africanos durante séculos continuamente. O potencial educativo de sua obra tira enorme proveito do desinteresse institucional de instruir o conjunto da sociedade sobre as origens das pessoas negras (e de toda a Humanidade). Trazendo referências estéticas, filosóficas e políticas, a cantora e compositora mostra que ao segurar a caneta e escrever a narrativa da diáspora negra em primeira pessoa, a transformação causada pela identificação e pelo alívio de encontrar eco para suas paixões, anseios e dores, o povo preto pode ir além ao imaginar um futuro onde os valores africanos são protagonistas, deixando a miséria em segundo plano.
Relacionando a narrativa do menino negro que, após a morte de seu pai, busca sua ancestralidade, o filme passeia profundamente por temas e valores civilizatórios da cultura africana como a circularidade presente nas práticas espirituais tradicionais, a relevância do legado ancestral para as sociedades pré-coloniais, a conexão com o universo e a natureza. Tudo em Black Is King comunica: as roupas, os acessórios, as cores, as pessoas, os cenários. Tudo ali tem um porquê que vai sendo desvelado à medida que o espectador avança na sua própria jornada em busca do conhecimento ancestral. É uma metalinguagem. Enquanto viaja em direção ao passado, Beyoncé instantaneamente projeta um futuro próspero, belo, brilhante — e, por que não, glamouroso! — para os descendentes de africanos tão acostumados às imagens de dor e sofrimento veiculadas nos produtos midiáticos de massa. Black Is King se torna histórico na medida em que faz o papel de oferecer não só catarse, mas informação e alegria para quem, por tanto tempo, foi invisível nas narrativas que versaram sobre grandeza, beleza e prosperidade.
Brilhando como a estrela Sirius, que durante milênios guiou os Dogon em sua travessia terrena, Beyoncé ofusca os olhos de quem não sabe ver além.
* Morena Mariah é pesquisadora, podcaster e criadora da plataforma de educação Afrofuturo.