Budismo, Meditação e Inclusão

Minha experiência na Califórnia teve o que o Californiano chama de “such a good taste”, algo como algumas das boas experiências acerca de um lugar. E parte disso começou a acontecer porque decidi me abrir para novas experiências.

Por Cintia Cruz para o Portal Geledés 

Como muitas mulheres negras, crescemos nos protegendo de experiências que possam nos surpreender negativamente ou que sejam mais um enfrentamento desnecessário. Falo dessas interações que se dão em torno de piada sobre cabelo, corpo, cor, feminilidade, sexualidade e tantas outros marcadores de identidade que se apresentam com frequência entre grupos de amigos, família, escola, trabalho, etc.

O que faz com que sejamos seletivas com os espaços que frequentamos mas também limitadas em nossa experiência humana. Cheguei na Califórnia por conta de minha pesquisa de doutorado sobre autoestima de mulheres negras em perspectiva comparativa Brasil e EUA. Uma das bases para a construção da autoestima é a capacidade reflexiva do sujeito de se afirmar para si mesmo. Autoestima é autonomia de uma perspectiva individual.

Sou pesquisadora feminista negra, por tanto, estou ao lado do meu objeto como sou parte dele. Comecei a refletir sobre meu papel nas minhas experiências na Califórnia, fosse no papel de pesquisadora feminista negra, latina, brasileira ou lésbica. Com minha trajetória de ter crescido “tímida”, aquela retração por conta de expectativas em torno das questões de “acolhimento” ou das tais brincadeiras nas interações. Quero dizer que escolher me retrair frente à esse “humor brasileiro” de nossa socialização foi uma estratégia de auto proteção. Meu tempo na Califórnia me parecia ser curto, uma temporada de 1 ano e seis meses na Universidade de Berkeley, então, eu tinha que me “jogar” como dizemos na Bahia. Tinha que quebrar não apenas a barreira da língua mas também da timidez e superar outros traumas gerados pela vida em sociedade, afinal, eu não sabia quando tal experiência poderia se repetir.

Parte dessa nova fase começou cinco meses depois da minha chegada na Califórnia, com minha introdução à prática do Budismo de Nichiren, na descoberta da meditação e dos discursos de um

movimento social em torno da elevação da capacidade de cada sujeito estar em paz consigo mesmo. O auto-acolhimento fora meu primeiro passo. Acolhi o fato de me perceber incapaz e o desejo de cuidar do meu espírito para enfrentar aquela que fora uma das mais desejadas experiências da minha vida: estudar em uma grande Universidade americana. Para o Budismo e as práticas de meditação trata-se de uma prática necessária em todas as situações que vivemos. Para o feminismo negro significa a busca da nossa verdade. E aqui vale lembrar que todas as feministas negras que tem escrito sobre autoestima de mulheres negras afirmam que o encontro da nossa verdade é fundamental para a construção de nossa autoestima. Buscar, encontrar e acolher o que está dentro de nós. Depois vamos trabalhando a liberação do que não nos serve mais ou do que queremos melhorar ou entender. Um processo lento, longo e contínuo. Mas sem passar por isso, segundo essas práticas e filosofia de vida, não estamos construindo autoconfiança e autoestima.

A noção de acolhimento tem chamado a minha atenção desde a minha pesquisa de mestrado, na qual o conceito de “acolhimento” apareceu como elemento central para entender as razões do sucesso da rede de salões Beleza Natural. O acolhimento do corpo de mulheres da classe trabalhadora em uma grande rede de institutos de beleza significa não apenas o sucesso de consumo dos produtos da rede mas também mecanismo de validação de feminilidade e produção de autoestima dessas mulheres na cultura brasileira, chamando a atenção aqui para o valor atribuído à sensualidade dos cabelos que balançam. Em outras palavras, conclui na minha pesquisa que a acolhida do desejo de suas clientes é a razão do sucesso da rede. Desejo esse construído como norma na heterossexualidade compulsória brasileira. A sensualidade como um espaço específico de construção da identidade da mulher. A sensualidade tradicional patriarcal: corpo, feminilidade, família, a hierarquização do mercado de trabalho, a inclusão dentro da categoria conforme os atributos de sensualidade. Toda uma distribuição social associada às marcas de feminilidade. A história de acolhimento das mulheres negras dentro da categoria mulher tem sido uma luta das feministas negras em diferentes contextos da Diáspora.

Trazer uma marca no corpo que nos difere do grupo majoritário é uma experiência que nos ensina a escolher os espaços que ocupamos de acordo com o acolhimento ao nosso corpo. Falar de acolhimento é falar de ocupar espaços. E no meu processo de escrita de uma tese de doutorado sobre autoestima de mulheres negras estou tendo a oportunidade de pensar sobre a nossa responsabilidade na conquista de espaços, nossa luta histórica de busca por novos espaços. A nossa própria existência, como primeira experiencia de conquista de espaço de modo autônomo. Com isso quero refletir sobre a experiência de inclusão  ou acolhimento através do budismo e da meditação como ferramentas utilizadas por algumas ativistas negras, lésbicas, transgênero e  imigrantes não brancas na Bay Area, Califórnia.

 

Estamos falando da “necessidade de busca por novos espaços” com muita frequência recentemente no movimento de mulheres negras. Por outro lado, o mundo precisa de novos espaços. As novas gerações precisam de novos espaços. E tem uma busca de espaço clara sendo vivida por todos. E eu queria falar um pouco sobre como o budismo de Nichiren se tornou um espaço constitutivo da minha descoberta de novos espaços. E como os diferentes tipos de Budismo tem atraído mulheres negras residentes da Bay Area.

Estou escrevendo uma tese sobre autoestima desde 2014 como aluna do Programa de Pós Graduação do Núcleo de Estudos sobre Mulheres Gênero e Feminismos da Universidade Federal da Bahia. O feminismo negro foi onde encontrei espaço para construir minha caminhada acadêmica. O feminismo negro tem sido o espaço que estou me descobrindo como escritora, desenvolvendo habilidade de comunicar as coisas que desejo compartilhar. Mas foi na descoberta do Budismo de Nichiren como um espaço de paz interior e na meditação, um espaço de conversa comigo mesma e autorreflexão, que tenho me aberto para a busca de novos espaços em uma nova fase de minha vida.

E esse texto emerge de minha experiência nesses espaços, da crença que tenho desenvolvido neles e de um encontro especial com uma das escritoras negras que mais tem inspirado mulheres negras, feministas ou mulheristas, há algumas gerações, Alice Walker.

Alice Walker, budista e produtora de conhecimento sobre o poder da mente, do amor como ferramenta e da paz como  sentido para a existência. E quando me conecto com a Califórnia através de sua peculiaridade, de sua capacidade de produzir novidade, estou me conectando com um Centro de Meditação criado para que pessoas de cor, gays, lésbicas, transgênero, acessem um espaço de conhecimento até então majoritariamente branco e heterossexual.

O East Bay Meditation Center é um centro comunitário independente, localizado no centro da cidade de Oakland. Oferece treinamentos em meditação, ensino espirituais advindos da filosofia Budista com atenção voltada ao multiculturalismo, ações sociais e diversidade populacional. O centro foi criado para atender “people of color” a comunidade que abrange politicamente imigrantes e seus dessedentes não brancos e a comunidade afro americana, LGBTQ, pessoas com deficiências e outras comunidades sub representadas socialmente em busca de acabar com o sofrimento pessoal, conquista de paz interior e felicidade. A ideia do centro surgiu entre seus membros fundadores nos anos 90 como ideia, e em 2005 surgiu oficialmente como espaço aberto à comunidade. O Centro funciona à base de doações de seus frequentadores. Uma das fundadoras disse entusiasmada “nós temos um custo de 32.000 dólares todos os meses. Eu não sei como conseguimos, mas todos os meses nós pagamos tudo. Tem sido assim há dez anos”.

Alice Walker ministrou um retiro de meditação e conversou sobre como podemos lidar com os conflitos gerados pelas questões de inclusão. Estamos à margem da sociedade Como nos mover diante de tantos obstáculos e ser feliz?

A platéia foi majoritariamente de mulheres negras, cis, lésbicas e trans. ,O local tinha cerca de 200 pessoas.  Spring Washam, professora de meditação e dharma, a fala Budista, o equivalente aos sermões na tradição católica ou às pregações nas tradições protestantes dividiu a mesa com Miss Walker.

 

“Nigga in the name of love – nigga in the language of love & What to do with in the mind” –foi o título da falaNeguinho em nome do amor – Neguinho em uma linguagem do amor & O que fazer com a mente” por Alice Walker. Ao ler o título da fala ela riu do trocadilho, como algém que se divertiu consigo mesma. Ela fez uma primeira menção ao tempo mundial atual, uma época de depressão e tristeza. Que ferramentas práticas podemos utilizar para viver feliz? A meditação e a prática budista são os recursos que ela acredita poder nos ajudar. Como podemos ser quem somos a partir do uso dessas ferramentas?

 

“Somos sempre iniciantes.

Essa é nossa sabedoria.

Que possamos fazer como os indianos”

 

Essas foram as primeiras palavras dela. O retiro ocorreu na cidade de Oakland, 06 de maio de 2017, um sábado ensolarado. Ela falou sobre consciência humana e que começou a meditar quando ela se divorciou e tinha uma filha pra criar . Fazendo um elo entre a prática e as questões da própria realidade. “O que a gente faz com a tristeza?” ou “Depressão e desespero, como estamos na maior parte do tempo? É importante encontrar caminhos pra proteger a mente.  Proteja sua mente o máximo que você puder. Nossa mente tem que ser protegida como se fosse um bebê. A colonização transformou nossa mente em lixo”. Ela diz que em uma sociedade doente, precisamos nos proteger.

A fala começou com um tom de conversa, como de praxe nos espaços de meditação e dharma talk. Antes de começar ela cumprimentou a mediadora, testou o microfone e Meditou. Sempre vi a meditação com muita curiosidade e me senti acolhida neste espaço próprio para pessoas de cor, gays, lésbicas e transgêneros. E Alice Walker foi persistente com essa questão no retiro “A gente tem um senso tão distinto do que é ser e estar neste mundo” estimulando nossa busca por afirmar quem somos. Pra mostrar que a gente precisa recriar nossa experiência. As pessoas são diferentes. A nossa experiencia entrecruzada por racismo, sexismo , xeonofia, por exemplo, não deve definer nem limitar quem somos. E a experiência para o budismo é aqui e agora, ou seja, a todo momento temos que estar presentes e viver de coração aberto o que a realidade está entregando pra gente. Por mais que às vezes desejemos fugir e evitar certos contextos, o Budismo quer que o enfrentamos. Seja aquela entrevista de emprego, aquela fala pública, aquela reunião do condomínio, aquela conversa com aquele colega do trabalho racista. Repetiu insistentemente “Não importa a situação, dê o seu presente. Dê o presente que você tem dentro de você”. Presente tem duplo significado aqui porque significa nós nos percebamos enquanto um presente. E nos percebamos como um presente a ser dado, a ser ofertado. E a presença é fundamental nisso. Estamos de fato no espaço que estamos? Sem aqueles pensamentos que nos levam pra outros lugares? Ela usou o conceito de “mental clouds” (nuvens mentais) explicando que os nossos pensamentos são como nuvens que movem e derivam no céu. Uma analogia para que a gente aprenda como nossa mente funciona. E a meditação é o aprendizado sobre como lidamos com nossos pensamentos. O Budismo é a prática de presentificarmos nosso modo de pensar.

Temos criado nossos espaços exclusivos, protegidos, nos quais podemos ser quem somos mas precisamos aprender a abrir nosso coração para a nossa realidade mais ampla. Para o novo, o desconhecido. E por isso ela diz que o Budismo é um recurso fundamental. O Budismo é uma religião ou uma prática que nos instrumentaliza a manter o ambiente que ocupamos positivo. A positividade afeta o ambiente que estamos.  Aconteça o que acontecer. Seja qual for a situação, se mantenha equilibrada e mantenha o equilíbrio do ambiente. “E dê o seu presente. Mas não é dar você.” É como se precisássemos aprender a encontrar um equilíbrio entre o que somos e o ambiente que estamos vivendo. Nós somos o nosso ambiente. O budismo de Nichiren foi uma ferramenta fundamental pra que eu conseguisse manter o equilibro nos EUA na condição de quem não pode trabalhar legalmente, as dificuldades do idioma, as diferenças culturais e a responsabilidade de fazer parte da minha pesquisa de doutorado sem financiamento.

Existe uma quantidade enorme de diferentes tipos de Budismo, mas a filosofia da paz, a luta pela paz mundial é um eixo em todas as diferentes formas de prática. E como o Budismo é prática, estudo e fé, as interações sociais acabam sendo o lugar da experiência (prévias, anteriores e até esquecidas) vem à tona, à superfície. Certas vezes penso que ter virado budista foi uma cilada porque a prática nos ensina a estar presente nos espaços  ou viver as experiências sem considerar os pensamentos que podem nos excluir de vivê-las. Com isso quero dizer que nossa bagagem sobre racismo, sexismo, xenofobia, transfobia, homofobia e outros marcadores de exclusão que interceptam nosso cotidiano não devem ser nossa primeira lente de conexão com nossas experiências. E como interagir em uma espaço se desligando dos julgamentos prévios sobre nossos corpos? Como evitar aqueles pensamentos que nos dizem que não deveríamos estar em certos lugares ? Por que é tão difícil entrar em uma sala de aula e esquecer que o racismo está presente naquele espaço e que devemos nos proteger ? Ou, como convencer a nós mesmas que apesar do racismo podemos explicitar nosso ponto de vista em qualquer situação ? Como acreditar nessa possibilidade se até então a realidade só nos fecha as portas para as nossas verdades ?  

Miss Walker não falou por muito tempo e ali eu estava diante de mais uma experiência inusitada: uma roda de conversa. Não houve uma fala longa, mas uma fala curta, como um aquecimento pra conversa, na qual as pessoas podiam perguntar de tudo. “Vamos para as perguntas? Espero que tenham muitas”, Miss Walker reforçou o espaço da conversa.

As perguntas foram uma experiência à parte porque as mulheres perguntavam por direcionamentos da vida real, coisas que acontecem no cotidiano delas. Clima de sala de aula. Spring Washam comentou “estou me sentindo no jardim de infancia”. Spring fala de um espaço de descoberta, sensitivo, colorido e aconchegante. Um sala cheia de mulheres curiosas, atentas, olhar fixo na palestrante e encantadas pelo conhecimento. Spring comenta que Miss Walker ajudou a pensar o centro e sugeriu que ele fosse criado no centro da cidade: “Faça uma coisa simples no centro da cidade”.

 

A primeira pergunta foi de uma jovem querendo saber como ser um bom modelo pra sua filha.  Miss Walker respondeu “Esteja única, firme com os seus valores e o que você vai fazer da sua vida”. Chamando atenção sobre como a auto-reflexão é o que nos direciona e não o mundo que está ao nosso redor.

 

A pergunta da sequência mostrou que a afirmação de quem somos, ao depender da nossa interação, nos ofertará uma posição melhor para entender quem somos. Uma posição que amplia o ponto de vista da nossa experiência humana, quando esquecemos o eu centrado, individualizado. A participante perguntou sobre como podemos encontrar paz vivendo uma vida tão difícil como na Bay Area. Gentrifcação da população negra, elevação dos aluguéis, dificuldade de emprego. Ela respondeu por cerca de seis minutos. A resposta da Miss Walker sugeriu um olhar pra Palestina, ou ter curiosidade sobre como é a vida na Palestina. Apesar da vida na Bay Area ser difícil, existe um lugar como a Palestina. “É inacreditável como as pessoas vivem lá”. Alice Walker quis mostrar que devemos dar mais atenção às comunidades nas quais as condições de paz são um desafio muito maior. Ou que as condições de vida seriam impensáveis se olharmos da esfera da nossa experiência.

 

Uma outra participante observou o fato que Alice Walker tem chamado nossa atenção sobre quem somos, e perguntou “Quem é Alice Walker? Como você se define. E Miss Walker foi segura em responder “Eu sou essencialmente um espírito e eu realmente vivo assim. Mesmo que as pessoas tenham me escravizado e tentem me colocar pra baixo, eu sou um espírito. Eu sou um espírito curioso. Sou um espírito cheio de recursos”. À medida que ela dava a resposta, era como se ela soubesse que, estando em uma “sala de aula”, as alunas estavam atentas a sua respostas e iriam aprender algo. Então ela também interagia com os olhos de quem se fixa um pouco em cada pessoa como quem diz “essa mensagem pode ser dita por cada uma de vocês”.  

 

E vamos para o que foi o momento de tensão da experiência – o único, aliás. E o exercício prático do aprendizado do dia. Uma mulher da platéia pega o microfone para fazer sua pergunta e começa narrando “Eu criei um grupo de mulheres para que juntas possamos aprender a curar nossas vaginas. Mas fui acusada de transfóbica porque não consegui incluir as mulheres trans. O que devo fazer se o propósito é a cura das vaginas ?” Miss Walker fechou e abriu os olhos duas vezes, uma dupla piscadela forte e disse “eu não entendi a sua pergunta mas eu acho que devemos estar preparados para a inclusão”. Fiquei pensando que vagina precisa de cura? De que cura se fala? Achei o máximo Miss Walker dizer que não entendeu a pergunta.

Àquela altura a platéia estava agitada e muitas mulheres queriam falar ao mesmo tempo.Mais de uma participante quis interagir com a pessoa que fez essa pergunta. A Spring quis assegurar que a pratica budista e a meditação fossem utilizados no momento daquela experiência “estamos em um espaço de meditação e não podemos admitir nesse espaço pessoas que não façam inclusão”. Ela não quis que a participante saisse do espaço ou deixasse de falar. A meditação é uma prática que nos ajuda a entender como fazemos a inclusão, por isso, não podemos deixar que quem entrou ali saisse com aquele mesmo pensamento. Era necessário investor um momento do retiro para dialogar em grupo sobre a pergunta da participante .

Madame Walker disse “Quando estamos juntas em espaços como esses estamos buscando sobrevivência e luz . Então temos que estar aptos para falar o que pensamos”. Ela quis mostrar a participante que ela tinha todo direito de se expressar, mesmo que as pessoas não entendam ou rejeitem nossa fala.

Uma outra participante quis retomar a questão, e disse, “nós precisamos sair deste espaço conscientes de que precisamos fazer inclusão”. Uma outra participante interrompeu “isso não é conversa pra hoje. Podemos falar disso depois”. Nesse momento a Spring Washam, pediu a fala novamente “Nós precisamos retomar essa questão. E só daremos continuidade na conversa depois que nos entendermos nessa questão. Este é um espaço de meditação e daqui não podemos sair sem um consenso. Temos tempo para ouvir a todas. Só não vamos admitir que uma fala seja sobreposta a outra”. O momento estava tenso, a mediadora quis assegurar todas as participantes pudessem se expressar mas que também pudessem refletir sobre suas falas. Ainda que para o Budismo que pratico o tempo de cada pessoa deve ser respeitado, achei interessante a persistencia da mediadora em fazer daquele dia uma experiencia pacífica.

A participante que havia sido interrompida por outra insistiu em tentar explicar a pergunta da outra participante e nesse momento Miss Walker disse com a calma constante “eu não estou entendendo a pergunta dela mas quero que você consiga explicar. Estou aqui e vou te ouvir”.

E quando ela terminou, uma outra participante se levantou e falou “sou uma mulher trans e quero agradecer o que vocês estão fazendo hoje aqui. Isso se chama suporte. Isso se chama apoio. Vocês não sabem como isso faz diferença na minha experiência. Estou lutando contra o Lupus e são tantas coisas que a gente tem que lutar todos os dias. Obrigada pela força de vocês”. E fez um gesto de gratidão curvando o corpo e cruzando as mãos. Uma segunda mulher trans se pronuciou na sequencia e também agradeceu. Confesso que neste momento me senti privilegiada por assistir aquela aula sobre inclusão e agradeci. Por mais que eu quisesse parar pra escrever, registrar todos os instantes, eu não conseguia me desconectar daquela experiencia de escuta e observação. Uma pergunta que parecia ingenua, as respostas inconformadas, uma fala aliviada se mostraram como uma sequencia de emoções que constroem nossos discursos, ocupam nossos espaços e nem sempre lidamos com esses sentimentos de uma forma que conseguimos manter a união do grupo.

Uma outra participante fez uma fala considerando que estávamos naquele espaço para falar de amor e paz. E que deveríamos nos concentrar nisso.

A Califórnia tem uma tradição sobre a liberdade de fala, o chamado “free speech”, e as pessoas exercitam essa prática. O que eu vejo um pouco diferente da experiência do “Brasil Cordial”, daqueles aprendizados sobre o que podemos ou não falar. Então, a California tem se configurado como esse “espaço seguro” para diferentes falas. Eu não me surpreendi com a pergunta da participante. Só não esperava que poderíamos ter uma pergunta que foi um presente. Afinal, produziu um exercício prático sobre inclusão, meditação, budismo e questões paradigmáticas da mais recente reflexão feminista atual sobre inclusão na categoria, na comunidade, no grupo de mulheres negras ativistas.

 

A perspectiva Budista e as práticas de meditação a consciência humana deve buscar a paz. De diferentes formas, aquela pergunta foi respondida do mesmo modo, é preciso considerar a inclusão. Miss Walker ainda falou sobre nossos espaços de fala “A gente tem que criar espaço pra gente e a meditação é isso. Eu gravitei para o budismo porque eles sabem o que eu estou falando”. Então, a meditação e o budismo funcionam como práticas de auto-reflexão com eixo na busca da paz. O que é um ganho para os movimentos sociais, à medida em que seus membros se questionam sobre suas próprias práticas cotidianas. A pergunta de uma ativista negra sendo considerada, sendo respondida mesmo diante do conflito gerado, e uma resposta pela inclusão sendo afirmada pela maioria do grupo.

 

 

 

Spring pediu um minuto de pausa, pediu que todas se “ajustassem”, como nas práticas de meditação, e nos preparássemos pra dar continuidade à conversa. Miss Walker permaneceu observando.

 

Dessa vez, a conversa foi sobre o tema da família e da interação social. A família tem sido vista como um “não lugar” para mulheres negras, ao mesmo tempo que é o nosso lugar. É de onde viemos, e então, como lidamos com o fato de que nem sempre as famílias são nossos espaços seguros? Ela disse “Alguns de nossos parentes, a gente tem que deixar ir. Nem sempre eles são tão importantes. Eles nem sabem quem eles são. Você não precisa estar com ninguém que não te vê. Nós estamos tentando o nosso melhor. Diga adeus e se abençõe. Não fique parada por pessoas que não te apreciam. Vocês são um presente. Nós somos um presente. Às vezes eu estou com minha mãe e meus irmãos não deixam eu falar. Eles querem falar sobre Beyoncé. Eu digo: “Vocês são loucos“. E nos dirigiu um sorriso doce. Ela estava compartilhando que, mesmo uma literata que atrai tantos ouvintes com ela, enfrenta situações que qualquer uma de nós enfrenta dentro da família. Ela estava falando de uma conversa simples em família, aquelas nas quais a gente disputa o espaço de fala com os homens a todo tempo.

E pra falar um pouco mais de família ela chamou nossa atenção para o modo como lidamos com nossos ancestrais, nossos antepassados, aqueles que já se foram. “Nossos ancestrais tem nos dado muito trabalho e eu estou cansada. Nós precisamos um plano de descanso, uma boa dieta e os ancestrais tem que entender que chegamos a este ponto”.

E continua, na direção de que o nosso espírito deve ser fortalecido, o “quem sou eu”. “O que seu espírito te dirige, não importa: você tem um presente a entregar. Não importa a situação, entregue seu presente. Mas não é tudo, não é ter você.”  

Ela fez outra referência ao contexto, explicando que estamos no tempo de lamentação. “A gente não sabe celebrar. Nós temos muito a celebrar. Somos mulheres negras reunidas nessa sala e isso é motivo de celebrar”. Ela sugere que a gente se aproprie da nossa experiência de modo positivo e comemorativo. O que ilustra uma maneira de criar espaço em nós para celebramos a nós mesmas. Mesmo quando falhamos, apreciar nossos erros. Mulheres negras tem falado tanto de espaços seguros e criar espaços pra gente, e Alice Walker sugere que dentro de nós deve haver espaço para celebração como primeiro ato da mente. Neste processo, o “eu espiritual” colabora com os outros “eus”, o “eu social” por exemplo, que pra maioria daquelas mulheres se apresenta com o “eu político”. Os estudos de autoestima chamam a atenção para a diferença entre nossos “eus”. O “eu material”, “eu social” e “eu espiritual”. O eu espiritual é o que carrega nossa essência, aquilo que deve ser (re) descoberto, segundo bell Hooks. Ela tem utilizado o conceito de self-recovery  ou “auto-recuperação” para explicar sobre uma etapa que considera fundante do processo de autoestima para mulheres negras.

Miss Walker estava sugerindo que celebremos nossas práticas. Não importa o contexto, sejamos sempre um motivo de nossa própria celebração. Autoestima é pensar positivo acerca de si mesmo em qualquer situação. Ainda que as interações sociais, as dinâmicas das relações sociais nem sempre nos legitime ou nos positive, nós precisamos fazer isso por nós mesmas. A prática Budista e de meditação nos ajuda a entender que aquela situação que não nos legitima não deve ser considerada como a situação que nos define. A gente precisa entender que devemos estar preparadas para ocupar espaços protegendo nossa mente como quem protege um bebê e oferecendo nosso melhor. Ela diz: “nenhuma de nós chegaria até esse espaço se não fossemos mulheres negras”. Nós sabemos que precisamos de espaços como esse. E pensar a construção de espaços seguros cada vez mais se reflete com a relação que estabelecemos com nossas comunidades. Com a autor-reflexão e com a inclusão em nosso próprio grupo.

O Budismo de Nichiren foi um suporte fundamental quando me dei conta dos limites que a identidade imigrante impusera à minha experiencia de pesquisadora em Berkeley. Considerando também os impactos da diferença cultural e os efeitos do individualismo no cotidiano, a vontade de desistir do meu projeto me perseguiu por um longo período da minha experiência nos Estados Unidos.

 

E em uma pergunta sobre o tema da morte, uma participante diz “Eu trabalho em um funeral, eu converso com as pessoas sobre a morte e tenho feito uma pesquisa e percebido que o mesmo número de homicídio de pessoas negras se reflete no número de suicídios entre pessoas brancas”. A plateia e Miss Walker abrem os olhos diante da informação. E Miss Walker muda o tom da voz, pára um pouco antes de responder e diz “Eu acredito que seu trabalho é muito importante… conversar com as pessoas sobre a morte. O Budismo é muito útil pra pensar a morte. Pensar a transição. Eu acho que todos aqui estamos tentando encontrar um caminho para viver e morrer.”

 

Tivemos uma pausa para o almoço. Miss Walker almoçou com o grupo, conversou com quem se aproximou, deu autógrafos. E voltamos para a segunda sessão. Meditação novamente. Tivemos um workshop sobre chackras. Miss Walker meditou sozinha novamente antes de recomeçar a conversa. Confesso que a partir daqui a pesquisadora negra deixou de existir e já não fiz anotações. Minha presença no espaço exigia uma atenção em que eu não consegui alcançar minhas anotações novamente. Me recordo que ao final de cada sessão tivemos espaço para anúncios diversos. Qualquer participante poderia falar.

Tivemos desde anúncios de eventos pra comunidade de mulheres negras até oferta de serviços como massagens terapêuticas. Uma música começou a tocar e a mediadora Spring Washam pediu que as mulheres se levantassem, soltassem os braços e sentissem seus corpos se conectando com o som da música “we are family, I got my sisters with me”. A audiência dançou, se divertiu entre si. Algumas conseguiram atrair pessoas em volta de suas danças e aplausos. Antes de encerrar, a mediadora pediu que fizéssemos uma foto final, anunciou que haverá um próximo retiro com Miss Walker e a audiência celebrou. Já na sala de fotos, Miss Walker senta diante da sua turma, pousa para foto. Ao sair, se permite ao momento dos “selfies”. A fila não tomou mais do que 10 minutos do seu tempo. E voltou para sua bolsa, colocou uma planta que trouxe consigo e seguiu. A audiência ajudou a reorganizar o espaço, colocando todos os assentos em seus devidos lugares. Recolocaram seus calçados, e se despediram entre si. Miss Walker pediu que pensássemos em nossa sisterhood, irmandade. Nos chamou bastante atenção para as pessoas que estão do nosso lado direito ou do nosso lado esquerdo. Confesso que saí com imensa vontade de escrever esse texto, de compartilhar uma experiência que foi um presente. Um presente que encontrei em uma fase de luta por sobrevivência na Califórnia, luta pra escrever uma tese e luta pra construir minha própria autoestima. A intelectualidade tem sido um espaço duro mas também tem sido o espaço libertador. É fundamental que feministas negras estudem, se instrumentalizem para enfrentar as interações sociais que vamos enfrentar. Por outro lado, a luta por enfrentamento é grande. O capitalismo é uma esfera de enfrentamento. E para corpos tão visados como os nossos, as mesmas armas do opressor não são a solução.

O nosso equilíbrio e a nossa clareza emergem da paz. E ter paz em tempos sombrios é um desafio que a filosofia budista tem ajudado muito.

*Cintia Cruz – Doutoranda em Estudos Feministas na Universidade Federal da Bahia/PPGNEIM com o projeto de tese “Levanto a autoestima a sério: como se constrói a autoestima de mulheres negras /afro-descendentes no Brasil e Estados Unidos.

 

 

+ sobre o tema

para lembrar

“Eu até não sou racista…

"Eu até não sou racista... mas" não tenho pachorra...

Abraços que não incluem nem libertam: a realidade dos abraços morais

Recentemente tem circulado uma campanha realizada pela Associação de...

Cara pessoa branca, você consegue não estar sempre no centro?

Participei de uma roda de conversa sobre mulheres negras...

Kabengele Munanga: “É preciso unir as lutas, sem abrir mão das especificidades”

Kabengele Munanga anda apressado pelas ruas de Cachoeira, como...
spot_imgspot_img

As Ações afirmativas em tempo Espiralar: (re)existência, luta, palavra e memória

“A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio, ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência...

Espelho, espelho meu… Na bolinha dos olhos, há alguém mais preto do que eu? O colorismo como elemento de divisão da negritude e da...

Ao menos nos últimos dez anos, ocorre um fenômeno em meio ao universo intelectual e militante do movimento negro brasileiro, que é a retomada...

Dois anos sem Moïse

No mês de janeiro a morte do refugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagambe completará dois anos. Moïse foi vítima de uma agressão brutal que o...
-+=