Como será o mundo pós pandemia? Pesquisadora da UnB aposta em novos valores para humanidade

Para Débora Diniz, ‘é do desamparo que vamos conseguir imaginar outras formas de vida’. Professora fala ainda sobre como isolamento social rompe redes de apoio de mulheres; leia entrevista.

Por Marília Marques, do G1

Débora Diniz, pesquisadora da Universidade de Brasília — Foto: Arquivo pessoal

Um mês após a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarar a pandemia de Covid-19, os países ainda estão aprendendo a lidar com regras de isolamento social, com o crescimento exponencial de casos do novocoronavírus e os impactos econômicos e sociais da doença.

No Brasil, aulas foram suspensas, comércios estão fechados e as famílias de baixa renda serão atendidas por benefícios emergenciais do governo. Do outro lado, até quem passava longe do status de vulnerabilidade social se viu em busca de alternativas para contornar a crise.

Em meio ao desamparo e aos aprendizados de como lidar com a situação, cientistas sociais fazem análises de como os efeitos da disseminação do vírus afetam a vida em sociedade e apostam em perspectivas futuras de como será o mundo pós-pandemia.

Novo coronavírus tem infectado milhares de pessoas ao redor do mundo — Foto: Reprodução/Getty Images

A pedido do G1, a professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Débora Diniz, de 50 anos, traçou um panorama da humanidade em um futuro próximo. Para a pesquisadora, o momento é de “melancolia e intenso sofrimento”, mas com perspectivas positivas e baseadas em valores humanitários, como cuidado e solidariedade.

“Essa experiência compartilhada do desemparo vai lançar o que estou chamando de valores feministas, mesmo que não nomeemos assim”, disse.

“O que vai haver depois da pandemia é a emergência de valores como solidariedade, o reconhecimento de que nossos privilégios são ‘imerecidos’ […], de que somos interdependentes e que valores privados não podem reger a vida pública.”

Na análise, Débora – que em 2016 foi considerada pela revista norte-americana “Foreign Policy” um dos 100 pensadores globais, pelo trabalho sobre as grávidas que contraíram o zika vírus – também aborda como a pandemia atinge mulheres, acentua vulnerabilidades e conta sobre a iniciativa criada por ela para dar “rosto e nomes” às vítimas do coronavírus.

Veja pontos abordados na entrevista:

  • Como o isolamento social afeta homens e mulheres
  • Desigualdades acentuadas durante a pandemia
  • Mundo pós-pandemia e valores sociais
  • Por que os homens são as principais vítimas da Covid-19?
  • Medidas de distanciamento e a violência dentro de casa
  • Rompimento das redes de apoio femininas
  • Novos valores para humanidade

Leia a entrevista

G1 – De que forma a pandemia de coronavírus tem atingido homens e mulheres no Brasil e no mundo?

Débora Diniz – Uma pandemia é um momento em que nós começamos a falar da humanidade como populações, então, falamos para “proteger as populações, que precisamos de medidas de isolamento social, de que as pessoas façam o trabalho remoto”[…]. E essas são saídas que funcionam para populações de modo abstrato, como se todos pudessem ter distanciamento social ou pudessem fazer o trabalho remoto.

Quando mudamos [o conceito] de populações para pessoas – pessoas que têm corpos, que têm gêneros, classe e raça – há a presunção global de que existe uma casa em que as pessoas possam estar em distanciamento social.

Mas, quando vemos as famílias mais pobres, as casas não têm uma concepção de segregação, já que são habitadas por muitas pessoas. Há uma falta presunção de que a casa é um espaço seguro para mulheres.

“Quando mulheres têm a porta da casa aberta para o trabalho, fecha-se o espaço do contato dela com o mundo.”

Lembra daquelas cenas cotidianas da mulher que “caiu da escada”? Assim fechamos a porta de saída para mulheres.

31 de março de 2020 – Ponto de distribuição de água da Caesb em Santa Luzia, na Estrutural — Foto: TV Globo/Reprodução

G1- E quando consideramos as classes sociais, quais são os impactos da pandemia?

Débora Diniz – Ignoramos que mulheres trabalhadoras – a massa concreta de mulheres na informalidade ou que estão em trabalhos essenciais para sobrevivência da classe média e elites do Brasil – não podem fazer trabalho remoto. São as caixas de supermercados, auxiliares de farmácias, faxineiras de hospitais, babás e técnicas de enfermagem.

Esse é o mundo concreto: quando olhamos a Central do Brasil, no Rio de Janeiro, a Linha 2 de metrô em Nova York, o TransMilenio, em Bogotá, a cara das pessoas no transporte público é a cara, a cor e a classe da população mais vulnerável, antes mesmo da chegada da pandemia.

Quando falamos de regras abstratas, no “fim da linha” elas têm corpo, cor e classe: é uma mulher, negra ou indígena na América Latina; latina ou negra nos Estados Unidos, e tem cor – que não é da mulher branca e não é da mulher mais escolarizada que faz o trabalho remoto.

“A vida da mulher concreta se amplificou em dificuldade e em risco, porque ela continua indo para o trabalho ou está em casas de maior risco, onde não há isolamento e que se tem uma avó perto dela, na coabitação.”

Para essas mulheres do mundo concreto, as escolas fecharam, elas perderam as avós que cuidariam das crianças, perderam a importante rede de contatos.

Na ausência de um Estado que desconhece a necessidade de proteção ou a economia doméstica, são as mulheres que se protegem mutuamente […]. E o isolamento social rompe essa rede de cuidado, o circuito de cuidado das mulheres à vida, das crianças e dos idosos.

“Quando as regras abstratas para prevenção da pandemia ignoram as desigualdades entre homens e mulheres, de raça e de classe, abandonamos as mulheres de maior vulnerabilidade.”

G1 – Qual a perspectiva para a humanidade em um mundo pós-pandemia de coronavírus?

Há uma disputa sobre que mundo haverá pós-pandemia. Todas as vezes que fazemos a antecipação do real, podemos estar errados, mas minha projeção não é baseada em esperança, mas em resposta ao que já estamos oferecendo.

Vejo que valores hoje silenciados, como o cuidado, a proteção social e o reconhecimento de que a “uberização do mundo” não nos protege, mas nos desampara.

“Essa experiência compartilhada do desemparo vai lançar o que eu estou chamando de ‘valores feministas’, mesmo que não nomeemos assim.”

Nossas respostas sobre “que vida é uma vida boa” serão a vida que vamos reconhecer que o cuidado das crianças e dos mais vulneráveis e a proteção ao desamparo da vida têm que ser um bem coletivo.

Algumas outras pessoas fazem uma projeção diferente: acreditam que vai surgir um mundo de maior desamparo, que governos ainda mais autoritários vão ser a resposta à pandemia.

Minha resposta é o contrário. O desamparo é criativo sobre outras forma de viver a vida e, com diferenças, cruza mulheres e homens – dos mais ricos e confortáveis aos mais pobres – e esse é momento de todos nos colocarmos em perspectiva de que tipo de humanidade queremos viver.

“Esse é um momento de intensa melancolia e sofrimento. É do desamparo que vamos conseguir imaginar outras formas de vida, porque nossos privilégios nos ofereciam uma proteção aos olhos e aos ouvidos.”

Antes, por que eu tinha que me preocupar sobre o desamparo de uma mulher que não tem creche para os filhos? Então, o desamparo agora nos obriga a fazer perguntas que os privilégios nos protegiam de não fazê-las.

Não é do medo, porque o medo não é mobilizador para criação. Os governos autoritários sabem disso. É o desamparo, de não saber se vou viver, como vou cuidar dos meus filhos nesse momento de escola fechada, de não compreender exatamente tudo que está mudando na ciência, da distância social daqueles que você gosta e talvez não possa se despedir na morte.

“Essa é uma experiência sem precedentes na memória das pessoas que estão vivas na história.”

É um desamparo semelhante a situações humanitárias. E o desamparo não acaba nunca, é uma condição humana, mas vivemos negando porque temos condições de proteção.

G1 – Dados do Ministério da Saúde mostram que 58% das vítimas da Covid-19 são homens. Há uma explicação social para eles serem a maioria dos casos?

Débora Diniz – Na pandemia há uma desigualdade na morte de homens e mulheres. A diferença é o fato das mulheres terem o risco evitável a longo prazo. Homens morrem mais por determinantes sociais da saúde que os deixam mais vulneráveis à pandemia.

Um homem usa uma máscara facial como medida de precaução contra a propagação do novo coronavírus, COVID-19, em Manágua, na Nicarágua — Foto: Inti Ocon/AFP

Homens têm menor medicalização do corpo e são mais resistentes a ir até o sistema de saúde, isso por uma cultura misógina e machista. Eles têm hábitos relacionados ao uso de álcool e cigarro, que os tornam mais vulneráveis a uma doença pré-existente.

Então, condicionantes de uma doença pré-existente, que chamamos de comorbidade prévia, está mais presente no homem do que nas mulheres.

Já quando olhamos as mortes evitáveis – quando não há comorbidade crônica prévia – que são as [mortes] das profissionais de saúde, temos a maior presença de mulheres. Quando vamos para aquelas que estão atuando nos trabalhos essenciais de resposta à pandemia, vamos ter mulheres que estão em posição de maior vulnerabilidade social.

São determinantes sociais de longa data que fazem parte da desigualdade de gênero e do machismo sobre o cuidado do corpo. […] Se perguntarmos que mulheres são essas que estão morrendo, teremos a concentração de profissionais da enfermagem.

O que esses números estão falando e de quem? […] Por que temos mulheres mias jovens morrendo durante a pandemia? Porque estão no trabalho de maior risco e de maior vulnerabilidade.

G1 – E neste período de isolamento social, como a violência age dentro de alguns lares? As mulheres estão mais vulneráveis?

Débora Diniz – Sim, as mulheres estão mais vulneráveis. Dados da China, na província onde expandiu a pandemia [Wuhan], a violência contra a mulher cresceu três vezes, mas são dados muito difíceis de serem recuperados.

Encontramos esse crescimento também nos Estados Unidos, na França e no Equador. Por onde a pandemia está fechando as casas, estamos tendo um maior numero de violência contra a mulher.

Ainda há a hipótese de subnotificação, porque a dificuldade de acesso aos serviços de proteção está por toda parte. Então, sim, há evidências que “trancar” mulheres nas casas, com todas as dificuldade que isso implica, de desemprego e fragilização da vida, aumenta a violência.

G1 – O que pode ser feito para reduzir esse risco social das mulheres?

Débora Diniz – Por um lado, as políticas de saúde têm que incorporar as realidades de desigualdades no desenho de politicas, não pode ser abstrata.

Agora estamos falando de um pacote emergencial de benefícios à população mais vulnerável no trabalho […]. Essas respostas têm que ter marcadores sociais importantes de desigualdade, como o gênero.

Mulheres usam máscaras de proteção como medida preventiva contra a propagação do novo coronavírus, em um mercado em Phnom Penh, no Camboja — Foto: Tang Chhin Sothy / AFP

[…] Assim como temos a discussão das portas de entrada para serviços de saúde serem universais, assim devem ser os espaços que não estão sendo usados durante a pandemia: que possam ser espaços para cuidar de mulheres em situação de violência. Essa é uma resposta concreta e imediata para o Estado assumir.

G1 – Quando a OMS declarou a pandemia, a senhora criou uma conta nas redes sociais para relembrar mulheres mortas pela Covid-19, dar nomes e rostos a essas vítimas. Pode falar mais sobre o projeto?

Relicário quer dizer pedaços, restos, pequenas lembranças de alguém. É o nome [da conta]. Quando comecei a ler as notícias sobre pessoas mortas na pandemia, me impressionava como relatavam os casos com dois grandes marcos: parecia mais abertura de prontuário médico, com comorbidades anteriores daquela pessoa para dizer que ela era obesa, tinha diabetes ou era idosa. E segundo, elas não tinham nomes ou fotos, elas eram números de uma estatística.

“Comecei a ver que eu tinha de dificuldade para me conectar com essas mortes, como se não houvesse o direito ao luto e à perda. O luto é um exercício político de sofrimento por mortes evitáveis.”

Não importa quantos anos a pessoa tinha, todas as mortes têm que ser sentidas, e em uma pandemia é a hora errada de morrer. A ideia é: enquanto tivermos mortos pela pandemia, todos os dias vou publicar uma história, com relíquias que escaparam aos números. […] São pedacinhos que me permitem imaginar quem era essa pessoa.

O Instagram é feito por um artista, Ramon Navarro. Ele representa as mulheres como dos séculos 19 e 20, porque há uma paratopia de geografia e tempo: não sabemos há quanto tempo estamos vivendo isso [pandemia] ou por quanto tempo vamos viver. Em geral, as poucas mulheres que têm rostos são as da elite.

“A massa das pessoas que morrem são anônimas, sem rosto, sem nome e sem biografia. O objetivo é exatamente provocar que, em uma pandemia, não há tempo para o luto.”

G1 – Já que estamos falando de vulnerabilidades, de que forma a pandemia e medidas de isolamento social fragilizam as redes de apoio dentro das famílias?

Débora Diniz – A principal rede de apoio que mulheres têm são outras mulheres: avós, irmãs e tias. Então, o cuidado das crianças – quando feito em Estados frágeis, como no caso do Brasil, em que as creches não são universais – as mulheres encontram soluções que estão dentro das suas redes de afeto, familiaridade e vizinhança.

Com a ruptura dos laços sociais, com essa paratopia – desordem geográfica de como nós vamos viver – as mulheres ficam isoladas não apenas em casa, mas elas perdem a possibilidade de proteção comunitária horizontal.

Então, a primeira rede que é rompida é a rede com outras mulheres. Não só a presença de homens na casa não é comum a todos os arranjos, como homens não se reconhecem no lugar de economia doméstica do cuidado. Essas piadas que circulam sobre homens que não aguentam a casa falam muito da desordem de gênero no cuidado doméstico.

“Para a vida das mulheres trabalhadoras essenciais e as informais só há duas opções: ou deixam suas crianças sozinhas ou rompem as regras de isolamento social e pedem às mães e avós para cuidarem de suas crianças.”

Elas desobedecem a ciência, não porque não compreendam, mas porque esta é a forma de sobreviver a uma pandemia. E isso é muito diferente de mulheres de classes mais altas e de mulheres mais ricas. Essas mantêm suas redes de cuidado em trabalhos pagos, ignorando os deveres de isolamento de suas trabalhadoras.

E não é por acaso que o primeiro óbito por coronavírus no Rio de Janeiro foi o de uma empregada doméstica. Sem julgar uma família em particular, uso isso como uma alegoria da desigualdade. Nem toda as famílias que terceirizam o trabalho do cuidado não dispensaram as empregadas.

Isso é uma situação muito diferente das mulheres concretas, que vão trabalhar, voltam para casa e muitas vezes estão em situação de violência ou têm que coabitar com várias pessoas, colocando essas outras pessoas também em situação de risco.

G1 – E em Brasília, como pessoas de classes sociais diferentes estão sendo afetadas pelo coronavírus? O isolamento social para pessoas de baixa renda aqui é diferente da quarentena de moradores de outras camadas sociais?

Residências em área da Península dos Ministros, no Lago Sul, em Brasília — Foto: TV Globo/Reprodução

O coronavírus entrou [no Brasil] por onde tinha mobilidade internacional, pela elites, porque é um vírus “estrangeiro”, diferente da zika, em que as condições para a disseminação eram nas classes pobres.

O núcleo de transmissão inicial do coronavírus eram aqueles em circulação global. À medida em que o vírus passa a ter circulação geográfica interna, que se torna autóctone, ele passa rapidamente a migrar para classes de maior risco [mais vulneráveis].

No DF, a primeira onda foi no Plano Piloto e no Lago Sul. À medida que vai se universalizando, vai se concentrando nas cidades satélites, nas periferias do trabalho.

G1 – Para gente finalizar, o que podemos esperar para o ‘depois da pandemia’ ?

Até o momento, ainda não há vacina contra o novo coronavírus — Foto: GETTY IMAGES

É a emergência de valores como solidariedade, o reconhecimento de que nossos privilégios são imerecidos, de que precisamos retornar às proteções sociais, ao Estado mais presente e não ao Estado mínimo…

Também que nós somos interdependentes, que valores privados não podem reger a vida pública e que podemos conviver com todas nossas diferenças.

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