Convite à Laís Cruz: uma negra jovem feminista

Não é novidade para ninguém que “assumir o próprio lugar de fala” é um dos principais ensinamentos dos feminismos negros.  Atenta às minhas origens e formação política completamente engendradas no feminismo negro, não me canso de contar para o mundo que falo do lugar de quem nasceu no paraíso, o Coqueiro Grande, bairro fincado em terras remanescentes quilombolas nas entranhas da Estrada Velha do Aeroporto. Refiro-me ao berço como paraíso, não como metros quadrados que compunha a ideia trazida pela anedota do Éden, mas como espaço que me possibilitou existir em plenitude, sem estranhar as contradições humanas por mim vivenciadas ou se furtar a enfrentar as tensões em função das assimetrias raciais e sociais a nós endereçadas. Lugar que alicerçou meu lugar social de fala a partir da consolidação da minha múltipla identidade: mulher negra feminista, religiosa de matriz africana e ativista do cinema negro.  Dali não há um só cartão postal que influencie visitantes às terras soteropolitanas a trocar um cravinho no pelourinho por uma cerveja bem gelada no bar de Tia Nenga. No entanto, há uma efervescência humana em conexão com o mundo que nos exige sorrir contemplativas a cada raio de Sol matinal.

Por Viviane Ferreira para o Portal Geledés

Nesse paraíso, também estão fincadas suas origens, Laís Cruz, e, a cada encontro que temos todas as vezes que visito nosso lar, me encanto com a fome de mundo que o brilho de seus olhos emanam. Me encanto em responder cada pergunta sedenta e cheia de curiosidades obre a minha possível proximidade ou conhecimento das obras e pessoas como: Djamila Ribeiro, Mel Adún, Cidinha da Silva, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Nátaly Neri, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Valdeci Nascimento, Yasmin Thainá, Larissa Fulana de Tal. Como já explicitado, minha querida, tenho cotidiano mais próximo de algumas dessas pessoas, outras consumo a produção como quem consome água. A todas elas tenho profunda admiração e sinto-me por elas inspirada. Te saber interessada na existência negra feminista me enche de expectativa que devores todas as obras já presentes em minha estante de livros e pastas virtuais. Ah, e quem me conhece sabe o quando tenho ciúmes dos poucos livros que consegui reuni nessa tríade de décadas vívidas. Mas quando se trata de alimentar sua sede de feminismo negro sou pura disposição.

Minha disposição não é fruto de benevolência ou favoritismo familiar, ela é fruto de responsabilidade política. É fruto da interiorização de outro ensinamento estruturante do feminismo negro: “nosso feminismo é construído dentro de casa, em nossas cozinhas, todos os dias, com nossas mães, irmãs, primas e amigas”. O feminismo negro  é cotidiano.  Não adianta exigirmos que sua mãe permita que você participe de todas as rodas de conversas,  saraus, palestras, cursos e eventos sobre feminismos negros se em troca ela, outra mulher negra, precise ficar em casa dando conta dos afazeres domésticos. É preciso dividirmos as tarefas necessárias à nossa existência para garantirmos que haja otimização do tempo cotidiano de todas as mulheres negras, inclusive nossas mães, para que assim tenhamos autonomia sobre nosso “tempo livre”. Exercitarmos nossa disposição ao diálogo e parceria cotidiana com nossas mães, irmãs, primas, vizinhas e amigas,  entendendo o papel social de cada uma das partes, é imperativo para que nos tornemos a cada dia uma jovem negra feminista mais consistente.

Por outro lado, Lai, compreendo que por vezes o paraíso, por mais que o Sol brilhe, nos lega um sentimento de isolamento, um sentimento gélido de que ninguém nos entende ou se interessa pelos livros que lemos, páginas que seguimos ou músicas que ouvimos. Chega a ser sufocante. E foi ao refletir sobre esse ponto que tive necessidade de escrever para ti, não no intuito de lhe trazer respostas, mas no ímpeto de apresentar mais questionamentos.

Sabes que a maior delícia de ter nascido no paraíso é ter a certeza que podemos circular pelo mundo e nos conectarmos com outras pessoas e realidades, de maneira responsável consigo, com a tranquilidade de termos para onde retornar? Sabes que em diversas partes desse nosso país continental existem um número infinito de jovens negras tão feministas quanto você, com tanta vontade de construir essa história quanto você?  Tens a informação de que parte dessas jovens negras feministas estão conectadas e em contato com feministas negras, em um diálogo Intergeracional, para construção do II Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas?  

Gosto da dinâmica que sua mãe estabeleceu para dialogar contigo e concordar com sua participação em ações que tenham lhe chegado por meio de pessoas e canais que ela julgue confiável à sua segurança. Com isso, ela consegue dividir com todas nós, primas e tias, a responsabilidade e o prazer de vê-la crescer e se desenvolver. Por meio desse convite aberto, valho-me da confiança dispensada à mim na direção de lhe propor leituras e processos seguros, para te contar que a construção do II Encontro de Negras Jovens Feministas é um desses processos que só se construirá genuinamente amalgamado pelo feminismo negro se puder contar com a sua contribuição, a contribuição de Jennifer Pinho, Natálya Cruz e toda a geração de vocês.

Faz parte do compromisso político da minha geração seguir em construção horizontal com você e com as tantas “negras jovens feministas”, que ainda não conheço, mas que existem em nosso país.

Lai, um dia Luiza Bairros escreveu sobre “nossos feminismos revisitados”. Eu gostaria de convidá-la para, após a experiência partilhada no II Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas, escrevermos sobre “nossos feminismos negros renovados”.  Porque, no final das contas Lai,  se  eu puder com esse convite lhe pedir para não esquecer de algo, é que não esqueça que construir é não ter medo de inovar e renovar.

Viviane Ferreira , cineasta negra e baiana

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