Crônica de morte anunciada, versão senegalesa

Por Rui Martins

O senegalês Satché de retorno à pátria, depois de viver nos EUA, sabe que está no seu último dia e aproveita para ver todas as pessoas que lhe são próximas e seus lugares conhecidos. Mas não se trata do cumprimento de uma sentença ou vingança, é uma celebração, um sentimento partilhado por seus amigos e familiares.

Esse o enredo de Hoje (Aujourd´hui) co-produção francosenegalesa, feita no Senegal, dirigida pelo francosenegalês, Alain Gomis, o único africano com filme na competição.

O ator principal, Saul Williams, ator e músico americano de Nova Iorque, aceitou o papel e viajou pela primeira vez à África, embora não tenha nenhuma idéia quanto ao país africano do qual saíram seus pais como escravos. Para ele, que confessou ter ficado impressionado com seu papel de alguém programado para morrer, foi o « maravilhoso reeencontro » com seu continente de origem.

Alain Gomis escolheu Saul Williams ao imaginar o filme e ver uma foto do americano, porém foi num encontro casual na rua, em Nova Iorque, que se confirmou a contratação. Como se vê, existe uma textura africana de coincidência e magia, nesse filme contra-corrente de retorno a Africa quando tantos tentam emigrar.

Algumas cenas de manifestações nas ruas lembram as recentes provocadas pelo tenso clima de eleições. Porém, Alain Gomis lembra serem filmagens feitas há mais de um ano « provocadas por uma situação de agitação que perdura há algum tempo, em consequência de uma classe minoritária que se enriquece rapidamente e de uma maioria que sofre cada vez mais, uma situação que pode também ocorrer na Europa, diz o cineasta.

O problema é que se tratam de agitações populares com dificuldades para se traduzir politicamente ».

O filme tem suas simbologias e algumas bem próximas da realidade. Não é mistério a recente invasão da África pelo chineses, que vão se tornando os neocolonizadores, transferindo para a África, em diversos países, centenas de milhares de trabalhadores chineses. Haverá uma miscegenação, como a conhecida pelas antigas colônicas de Portugal ? Em todo caso, Gomis anteviu essa transformação e, numa cena de rua, aparece um pai chinês tendo no colo um filho negro. « Foi difícil encontrar um chinês que aceitasse compor essa imagem » conta sorrindo Alain Gomis, que acrescenta « finalmente ele não é chinês mas coreano ».

O filme teve um custo mínimo, cerca de 800 mil euros. Gomis afirma ser cada vez mais difícil fazer filmes no Senegal, mesmo porque « não há praticamente mais cinemas ».

Rui Martins, de Berlim, convidado do Festival Internacional de Cinema de Berlim

 

 

Fonte: Correio do Brasil

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