A Declaração Universal dos Direitos Humanos é clara: todos têm direitos iguais, independentemente de classe social, gênero, raça, etnia ou religião. Não é o que acontece, no entanto. No Brasil e no mundo, as taxas relacionadas a crimes de ódio são altas, e têm crescido com a escalada de discursos racistas, machistas, homofóbicos e xenófobos, que ganham propulsão nas redes sociais e nas ruas num contexto de avanço do conservadorismo de governos de extrema-direita.
Por dia, no Brasil, ao menos uma pessoa LGBT é morta, oito casos de feminicídio são registrados pelo Ministério Público e 63 jovens negros são assassinados. Dados da Secretaria de Direitos Humanos mostram que denúncias contra casos de intolerância religiosa aumentaram 3.600% no país, entre 2011 e 2016. Apenas a cidade de São Paulo registra um crime de ódio por hora, a maior parte deles relacionada ao racismo, segundo a Secretaria da Segurança Pública.
Em outros países o quadro é semelhante. No último dia 12 de agosto, a cidade de Charlottesville, no sul do país, recebeu uma manifestação de supremacistas brancos cujos atos de violência resultaram na morte da ativista Heather Heyer. Estudo da Southern Poverty Law Center divulgado em novembro de 2016 mostra que em menos de um mês de mandato de Trump foram registrados 400 casos de racismo, islamofobia e xenofobia no país.
Desde que o presidente norte-americano começou a fazer campanha, em 2015, crimes contra muçulmanos aumentaram 67% nos Estados Unidos, em relação ao ano anterior, segundo o FBI. Na Itália, Polônia, Espanha e Alemanha, a maioria da população concorda que a entrada de muçulmanos deve ser barrada, de acordo com pesquisa do Instituto Chatham House. Na Inglaterra pós-Brexit, houve um aumento de 20% nos crimes contra minorias.
Ao longo da história do pensamento foram muitos os intelectuais que se debruçaram sobre o tema. À convite da CULT, Christian Dunker, Juliana Serzedello, João Alexandre Peschanski, Estevão Rafael Fernandes e Celi Regina Jardim Pinto indicam obras que se propõe a refletir, a partir de diferentes abordagens, acerca do ódio político, social e sexual contemporâneo.
Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a Banalidade do Mal, de Hannah Arendt (1963)
Em 1961, a filósofa alemã Hannah Arendt, de origem judaica, foi cobrir o julgamento do soldado nazista Adolf Eichmann para a The New Yorker. Esperando encontrar um monstro, Arendt se surpreendeu ao perceber que Eichmann era apenas um homem comum; um soldado que apenas cumpria ordens sem jamais questioná-las ou pensar em suas consequências.
Surgiu daí o conceito da “banalidade do mal”, o mais famoso da teoria arendtiana. “A obra mostra que não podemos atribuir atos de ódio a monstros não humanos, mas a pessoas que vivem a vida como nós. Há momentos na história em que muitos dos que vivem uma vida dura, sem reflexão, sem espaço para discutir e construir opinião acabam seguindo o mais fácil, e neste momento ideologias do ódio e lideranças fascistas tem facilidade de se tornarem populares”, afirma Celi Regina Jardim Pinto, doutora em Ciência Política, que considera o livro fundamental para que se pense a “simplicidade do ódio”, “como é um sentimento de pessoas que vivem a vida normalmente”.
O ódio à democracia, de Jacques Rancière (2005)
Em O ódio à democracia, o filósofo francês Jacques Rancière aponta contradições de Estados democráticos, como a questão das oligarquias que se revezam no poder em oposição a demandas por representação popular. “Ranciére mostra que, tanto na história quanto em nossa experiência contemporânea, a ideia de um regime político de equidade de relações com a lei e de liberdade no uso da palavra é percebida como uma ameaça à nossa ficção de um mundo estável, seguro e harmônico (ainda que não para todos)”, afirma o psicanalista Christian Dunker. O ódio, então, surge como resposta à existência de pessoas que não são iguais dentro do sistema democrático – os ricos ou os filhos de alguém.
A obra expõe um impasse político central entre a ideia de democracia e a prática social em países industriais, diz o cientista político João Alexandre Peschanski. “Em que medida essas sociedades desenvolvidas estão dispostas a receber em suas instituições políticas e comunidades aqueles que enxergam como diferentes (imigrantes ilegais ou refugiados)?”. A resposta do filósofo não é das mais animadoras. Para ele, há um movimento crescente disposto a destruir as instituições relativamente acolhedoras da modernidade para preservar os privilégios que as constituíram.
História da Sexualidade Vol. I: A Vontade do Saber, de Michel Foucault (1976)
No primeiro dos três volumes de História da Sexualidade, o filósofo francês Michel Foucault se debruça sobre como a sexualidade está intimamente relacionada a mecanismos de poder. “O texto é sobre a gênese dos múltiplos silenciamentos que perpassam nossos desejos e gestão do nosso próprio corpo (que, no fim das contas, acaba sendo tudo, menos nosso), por diversas instituições, dispositivos e discursos”, afirma o antropólogo Estevão Rafael Fernandes. Para ele, a obra é uma porta de entrada para pensar o ódio, especificamente aquele voltado para a diversidade sexual, como a homofobia. Isso porque, em uma sociedade que faz uso da sexualidade como meio de controle, tudo aquilo que foge à regra pode ser entendido como resistência aos mecanismos de poder: “O ódio não se aplica ao diferente, pura e simplesmente, mas à sua potência: sua existência torna possível um ser fora das correlações de força que dão sustentação ao próprio sistema de poder hegemônico.”
Entre campos – Nações, culturas e o fascínio da raça, de Paul Gilroy (2007)
O professor da London School of Economics (LSE) busca compreender como o pensamento de raça distorceu “as melhores promessas da democracia moderna”, mostrando como boa parte do que nasceu combativo dentro cultura negra (como o hip hop e o rap) foi apropriado pelo capitalismo e esvaziado de seu potencial questionador. “Partindo da ideia de que racismo, fascismo e nacionalismo são fenômenos interligados, o autor investiga e critica a fundo a construção de discursos racializados – considerando, inclusive, como problemáticas as reivindicações racializadas de grupos antirracistas. Sua proposta é construir um mundo ‘destituído de hierarquia racial’”, diz a professora e historiadora Juliana Serzedello. Para isso, Gilroy oferece um conjunto de conceitos próprios – como o “humanismo planetário”, em contraposição à “infra-humanidade” construída pela “raciologia” e reiterada pelos atuais padrões “nanopolíticos”. “Sua intenção, apresentada como horizonte utópico, é a de acelerar a desnaturalização da ‘raça’ como conceito organizador das relações humanas contemporâneas””, explica Serzedello.
Dilma Rousseff e o ódio político, de Tales Ab’Saber
Publicado pouco antes do impeachment, Dilma Rousseff e o ódio político, do psicanalista Tales Ab’Saber, investiga o ódio à política que se desenvolveu entre os brasileiros a partir dos governos petistas. O livro “revela a emergência de uma oposição autoritária e delirante, marcada pelo ódio à presidente”, diz o cientista político João Alexandre Peschanski. Em doze ensaios, Ab’Saber analisa como e por que o humor do eleitorado brasileiro se transformou durante a última década, indo da intensa adoração à figura de Lula para o completo ódio à classe política – um ódio que encontrou em Dilma um bode expiatório, e que teve seu ápice no impeachment.
O psicanalista chega à conclusão de que o ódio político se sustenta em uma “distorção efetiva da capacidade de pensar”, que teria base, escreve Ab’Saber, na “necessidade de saturar a realidade com desejos que não suportam frustração, bem como no impacto corrosivo dos mecanismos psíquicos ligados ao ódio sobre o próprio pensamento”. Hoje, afirma Peschanski, o mesmo ódio analisado por Ab’Saber há dois anos ameaça a própria democracia ao deixar os brasileiros em uma espécie de transe que “remete às neuroses da Guerra Fria”.