No calor da onda cinemanovista, o crítico e cineasta David Neves apresentou em 1965 a tese O cinema de assunto e autor negros no Brasil, na V Resenha do Cinema Latino-Americano em Gênova, na Itália. De modo pioneiro, David Neves debateu publicamente a presença negra no cinema brasileiro, indicando que negro sempre figurara como assunto, mas nunca como autor, de modo que o cinema de assunto negro era “quase sempre uma constante, quando não é um vício ou uma saída inevitável”. E até o Cinema Novo o negro aparecia nas telas invariavelmente de duas formas: a partir da exploração comercial de imagens exóticas e racistas ou de modo indiferente e acidental na trama. Assim, o Cinema Novo teria inaugurado uma preocupação com a representação negra que fugisse das lógicas predominantes até então e que além disso, propusesse uma indissociação entre personagens negras e o ponto de vista do realizador do filme, ainda que este fosse invariavelmente branco. Traçando uma genealogia do cinema negro brasileiro, David Neves aponta o roteirista de chanchadas, Alinor de Azevedo, como semeador de uma prática narrativa que florescera no Cinema Novo. Alinor de Azevedo assinou os roteiros de Eles vivem (1941), Moleque Tião (1943) e Também somos irmãos (1949). Uma icônica trilogia que ficou ilhada na história da chanchada, porque apresentou a vida negra na contramão da exploração comercial e racista, típica das comédias do gênero.
Na V Resenha do Cinema Latino-Americano, abrigada pelo congresso Terzo Mondo e Comunità Mondial foi publicado também o manifesto Estética da Fome, de autoria de Glauber Rocha, que entrou para a história do cinema brasileiro como um documento fundamental. Muito já foi dito e analisado a respeito de Manifesto, mas importa destacar aqui uma passagem do documento:
“Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para o francês perceber um argelino.”
Glauber Rocha foi certamente um importante promotor de diálogos entre cineastas da América Latina e do continente africano. A condição colonizada era a língua comum entre nós do Terceiro Mundo. Após a V Resenha, a Revista Civilização Brasileira promoveu um encontro com os diretores Gustavo Dahl, Carlos Diegues, David Neves, Paulo César Saraceni e Alex Viany; que resultou num aprofundamento das análises sobre as intersecções entre o cinema brasileiro e o africano. Assim, o Cinema Novo ao por em tela o assunto negro possibilitou interfaces com o cinema africano, ainda que existisse distâncias abissais entre os olhares sobre a negritude representada.
Quase quinze anos se passaram até que a intelectualidade brasileira avançasse no debate público sobre a negritude em tela. Em 1979 o crítico e cineasta Orlando Senna publicou na Revista de Cultura Vozes o texto intitulado Preto-e-branco ou colorido: o negro e o cinema brasileiro. De maneira didática Orlando Senna usou metáforas da classificação racial corrente no Brasil para dividir a história do nosso cinema em três fases histórico-raciais: A primeira é o Cinema Branco (1898-1930), onde via de regra o negro ou estava ausente, ou aparecia como um erro de decupagem que escapou do controle dos realizadores. Apesar do esforço de embranquecer o imaginário brasileiro, foi difícil apagar a presença de talentos como o do multi-artista Benjamin Oliveira ou silenciar a potência de figuras como a do almirante João Cândido, cuja luta deu ensejo a alguns filmes que foram censurados pela Marinha ou se perderam na trágica tradição de precária conservação do nosso patrimônio histórico. A segunda fase do cinema foi denominada por Orlando como Cinema Mulato e se dá após os anos 30, em grande medida informada pela publicação de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre.
“Difundindo uma imagem colonial e estereotipada do negro — animal de carga ou objeto sexual — esta parcela do cinema brasileiro evoca e confirma o sentido pejorativo da palavra mulato (que vem de mula)” (Senna, 1979: 215).
A terceira fase do cinema brasileiro começaria com o Cinema Novo e é batizada por Senna de Negro/Povo. Na genealogia do autor o germe desta fase está na obra de Nelson Pereira dos Santos, que nos anos 50 lançou os filmes Rio 40 Graus e Rio Zona Norte. Mas, o grande pulo do gato na interpretação de Senna, além de reiterar a ausência de cinema de autor e assunto negros concomitantemente, foi perceber que no Cinema Novo, negro era o povo oprimido e explorado e que as especifidades da questão racial foram diluídas nas análises e agendas da esquerda ortodoxa formadora dos cinemanovistas, que souberam traduzir nas telas a tese do sociólogo negro Guerreiro Ramos quando disse que negro é povo; mas que não compreenderam completamente a distinção entre negro-tema e negro-vida proposta pelo referido sociólogo.
Apesar da divisão proposta por David Neves e Orlando Senna, é possível dizer que o cinema de autor negro no Brasil é uma história mais antiga do que a contada oficialmente. Conforme o material produzido para esta edição do Encontro de Cinema Negro, em 1996, por ocasião do centenário do cinema, nas palavras do próprio Zózimo Bulbull:
“Tem-se registrado que o primeiro negro a ter participado naquela época dos primórdios da sétima arte em terras brasileiras, foi Benjamim de Oliveira, que era um artista de grande popularidade.”
Zózimo relembra também a importânciade José do Patrocínio Filho que já em 1910 roteirizou filmes como Paz e Amor, dirigido por Alberto Botelho e que teve êxito de público e bilhetaria. A historiografia do cinema tem se rendido à constatação de Grande Othelo é o nosso maior ator de todos os tempos, ainda que grandemente injustiçado em vários momentos de sua carreira. Se a atuação de Grande Othelo foi a alma das chanchadas, corre à boca miúda que o grande autor do gênero foi José Rodrigues Cajado Filho, que praticamente definiu as funções de cenografista e roteirista no período. Em entrevista a Sérgio Augusto, importante intelectual do nosso cinema, o dietor Carlos Manga deu a seguinte declaração sobre Cajado Filho:
“Era um sujeito difícil, ressentido, mas o seu ressentimento tinha uma razão de ser. Cajado foi uma eterna vítima do preconceito racial. Não o deixaram entrar na Escola de Belas-Artes, embora ele tivesse tirado o primeiro prêmio num concurso de artes plásticas patrocinado por ela. Nós, os brancos da Atlântida, tínhamos destaque; ele, não. E, no entanto, todos nós — eu, o Macedo, o Burle, o (Roberto) Farias — nos fizemos à custa do imenso talento dele. Ele sabia fazer de tudo: cenário, argumento, roteiro, criar gags, dirigir. Para mim, Cajado é quem foi o verdadeiro pai da chanchada”
Carlos Manga foi certamente um diretor não alheio ao racismo no cinema. Levou para as telas as desavenças em grande parte de cunho racial entre Grande Othelo e Oscarito no filme A Dupla do Barulho e soube reconhecer a importância de Cajado Filho nas Chanchadas. Mas apesar disso, quem conferiu a programação do 11o. Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbull no Cine Odeon, percebeu que na entrada de um dos grandes templos do nosso cinema está a imagem em bronze do Carlos Manga e não a de Cajado Filho… Outros nomes negros fundamentais para a história do nosso cinema certamente é o de Ruth de Souza, salutar para a breve trajetória dos estúdios Vera Cruz e o de Antonio Pitanga para a própria história do Cinema Novo. Quem conferiu o documentário Pitanga, de Beto Brant e Camila Pitanga sobre a carreira de Antonio Pitanga, pôde conferir a aula de direção de cena que Pitanga fez em A Grande Cidade de Cacá Diegues.
Mas esse movimento de pulsar à sombra da história foi denunciado por Zózimo Bulbull, outro nome fundamental ao Cinema Novo e Cinema Marginal. Em Compasso de Espera ele revive um drama racial que o país não foi capaz de compreender em Também Somos Irmãos, uma obra fora de lugar nas chanchadas e protagonizada por Grande Othelo e Agnaldo Camargo. Das sobras de Compasso de Espera, Zózimo declara o fim de uma era de espera em que o negro foi impossibilitado de conciliar cinema de assunto e autoria negra a um só tempo. Assim nasce em 1973 o Alma no Olho, filme fundamento do nosso cinema negro. Zózimo Bulbull poderia ter gozado a tranquilidade de ser o galã negro, o Sidney Potier brasileiro, mas resolveu comprar briga e lutar por um cinema genuinamente negro. Colocou no ventilador incoerência de figuras que se por um lado fizeram história ao retratar o negro com novos olhares no Cinema Novo, por outro, revelaram completo descompromisso com uma representação não-estereotipada no negro. Zózimo aponta a falta de comprometimento com o debate racial ao considerar o fato de que Ganga Zumba e Xica da Silva, por exemplo, são dirigidos pela mesma pessoa…
Neste sentido, importantes nomes do Cinema Novo também se refestelaram no chamado Cinema Mulato, revelando uma esquerda que no fundo sempre apostou na democracia racial. Conforme indica o cineasta negro Joel Zito Aráujo, há um profundo apego destes diretores brancos nas teses de Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Fernando Henrique, Sérgio Buarque de Holanda ou até mesmo nos equívocos de Forestan Fernandes, de modo que “para nenhum deles o nosso maior problema é a desigualdade social e racial, e consequentemente o racismo, fundados na escravidão”. Neste sentido, o pioneirismo de Zózimo Bulbull é de fato louvável, pois disputar interpretações sobre a história negra no Brasil através do áudio-visual significou enfrentar a Globo e antigos parceiros do Cinema Novo. Seu longa-metragem Abolição está na contramão de uma narrativa de louvor à princesa Isabel, que tenta apagar uma história de resistência ao colocar negros livres e libertos numa vala comum. Outra artimanha de Abolição é escancarar a cor negra de toda a equipe de realização anunciando que narrativas negras precisam ser dirigidas por olhos e mãos negras.
A ousadia de Zózimo Bulbull ecoou no Manifesto Dogma Feijoada (2000) documento puxado pelo diretor Jeferson De, mas de autoria coletiva (Jeferson De, Rogerio de Moura, Ari Candido, Noel Carvalho, Billy Castilho, Daniel Santiago, Lilian Solá Santiago e Luiz Paulo Lima), que traduziu o inconformismo com desigualdades latentes no cinema brasileiro que tomava corpo após a chamada retomada. Para fazer frente à corrente Estética da Fome, onde as mazelas sociais e raciais são representadas como espetáculo pop, emoldurado politicamente apenas para fins decorativos, o Manifesto negritava a urgência de um cinema de ponto de vista negro:
(1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o protagonista deve ser negro; (3) a temática do filme tem de estar rela- cionada com a cultura negra brasileira; (4) o filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-ur- gentes; (5) personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; (6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; (7) super-heróis ou ban- didos deverão ser evitados.
No ano seguinte, cineastas, atrizes e atores negros lançaram o Manifesto de Recife, assinado por Zózimo Bulbul, Joel Zito Araújo, Antonio Pitanga, Ruth de Souza, Léa Garcia, Milton Gonçalves, Maria Ceiça, Maurício Gonçalves, Norton Nascimento, Antônio Pompêo, Thalma de Freitas e Luiz Antonio Pilar. Este segundo documento amplia as preocupações do Dogma Feijoada para a representatividade negra também nos campos da TV e da publicidade.
Estamos em tempo de reescrita e reinterpretação da presença negra no cinema brasileiro. Em Capítulos de Uma História Fragmentada, o crítico negro Heitor Augusto faz um esforço enciclopédico de reunir filmes de direção negra desde 1973, dividindo em cinco eixos: raízes, diáspora, corpo, família e genocídio. Tendo em vista a histórica desigualdade de acesso de realizadores negros/as a políticas de fomento no audiovisual brasileiro, o conjunto de obras elencadas são todas curta-metragens, já que o número de realizadores negros com longa metragens no currículo ainda é possível de contar com os dedos da mão: Cajado Filho, Agenor Alves, Cândido Fernandes, Haroldo Costa, Odilon Lopes, Waldir Onofre, Antonio Pitanga, Afranio Vital, Zózimo Bulbull, Rogério de Moura, Celso Prudente, Joel Zito Araújo, Adélia Sampaio, Jeferson De, Lila Sola Santiago, Carmen Luz, Glenda Nicácio, Camila Moraes, se não me falha a memória…
Assim, a 11a. Edição do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbull ao exibir 76 filmes brasileiros e 25 africanos, negrita em alto e bom tom que há um levante negro empretecendo as telas do mundo aqui e além mar. A emergência de diretores/as negros/as é fundamental para a existência de um “cinema do real” onde não há manipulação das aparências para colocar o espectador em um estado passivo de identificação acrítica”, tal qual indica o diretor Manthia Diawara, que também esteve presente nesta edição do Encontro. Ou conforme Melvin Van Peebles, o diretor expoente do Movimento Blaxplotation que anos 70, deixou escola quando estabeleceu os postulados: “Regra número um: Não haverá meio termo. Eu farei um filme sobre o negro real. Quero um filme que faça os negros saírem do cinema orgulhosos ao invés de temerosos. Regra dois: Esse filme tem que entreter como o Diabo. Regra três: Cinema é negócio.” Ao contrário dos Estados Unidos, aqui as narrativas de realizadores/as negras/os ainda não são vendidas ou financiadas febrilmente como em dias de black friday, mas somamos o coro de cineastas negros/as em diáspora unidos/as no incorformismo com uma indústria cinematográfica quando insiste em velhas práticas black face para mascarar a insuficiente ou equivocada representação negra nas telas.
Assim, o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbull é a prova de que há uma profusão de realizadores negros/as cuja ação cotidiana é em grande medida arregaçar as mangas e por em prática o conselho do diretor mauritano Dramane Sissako que no filme A Vida Sobre a Terra nos convoca a não cruzarmos os braços “na posição estéril de um expectador”. Há muito a ser feito, e neste sentido, o manifesto Dogma Feijoada permanece mais atual do que nunca. E nesta luta por um cinema negro em diáspora, estamos no processo de refinar os instrumetos de diálogo: Conforme sugere o crítico negro Juliano Gomes, precisamos saber “canibalizar o legado negro do EUA e saber recusá-lo”. De igual modo, precisamos acertar melhor nossa bússola com os cinemas afro-caribenho, sulamericano e africano. O Cinema Novo começou diálogos, Zózimo Bulbull consolidou pontes históricas e a atual geração brasileira que ajuda a construir a FESPACO, (Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou) o maior Festival de Cinema no continente africano que ocorre anualmente em Burkina Faso, mantém esta chama viva. Desse modo, saibamos saudar quem nos abriu caminhos sem deixar de ouvir seus conselhos; como este do diretor Joel Zito: “o conceito de Zózimo de criar e estabelecer pontes sólidas entre negros brasileiros e africanos ainda não foi esgotado”. Ou seja, há muito a ser feito, ainda que como diz a pesquisadora negra Janaína Oliveira: “quando falamos em cinema negro hoje, não falamos mais de um projeto em construção, mas de um movimento consolidado que avança exponencialmente com o passar do tempo, apesar dos ventos turbulentos e não muito favoráveis que sopram atualmente no cenário político nacional.” Assim, o 11o. Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbull ocorrido entre 29/08 a 09/09 foi uma rica oportunidade de conferir a presença e a atuação negra no audiovisual numa perspectiva histórica e diaspórica.
Viviane A. Pistache é graduada em Psicologia pela UFMG e doutoranda em Psicologia pela USP. Preta das Minas Gerais, atualmente vive na Terra da Garoa se arriscando em contos, roteiros e crítica de teatro e de cinema.
Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.