Entidades denunciam racismo após pastor demonizar imagens de religião afro

Enviado por / FontePor Ed Rodrigues, do UOL

Representantes de religiões de matriz africana de Pernambuco acionaram a Justiça para retirar das redes sociais a postagem de um pastor evangélico que chamou de “reverência a entidades satânicas” os painéis artísticos em um túnel do Recife. Eles representam os elementos da natureza sob a ótica da cultura afro-brasileira. As entidades também fizeram uma denúncia por racismo religioso e discurso de ódio.

No vídeo, publicado na segunda-feira (26), Aijalon Berto, da igreja Ministério Dúnamis, localizada no Grande Recife, diz que as imagens contêm ideogramas ligados à “feitiçaria” na cultura afro. “Esse painel é nada mais, nada menos que uma reverência a entidades malignas, satânicas. Espíritos das trevas. As entidades não são forças da natureza, são demônios”, afirmou em vídeo do Instagram.

O painel artístico, concluído no início do mês passado, fica no Túnel da Abolição, ao lado do museu de mesmo nome. Parte do programa municipal Colorindo o Recife, tem a assinatura dos grafiteiros Emerson Crazy, Adelson Boris e Nathê Ferreira. Nele estão os quatro elementos da natureza sob a perspectiva de religiões afro-brasileiras, como o candomblé: Inã (fogo), afefe (ar), aiye (terra) e omi (água).

Crazy considerou as declarações do pastor como um ataque não só a milhares de pessoas de religiões afro mas também à arte. “Esses comentários acabam incentivando outras pessoas ignorantes a atacar algo que não conhecem”, afirma.

Procurada pelo UOL, a Prefeitura do Recife informou que a proposta do programa é fazer da capital pernambucana uma grande galeria de arte a céu aberto e promover o protagonismo dos artistas urbanos.

O programa foi criado em 2013 e, desde 2017, é uma política pública constante da cidade para fomentar a interação com espaços públicos. São mais de 200 painéis espalhados pela capital pernambucana.

Segundo a administração municipal, os temas nascem do diálogo entre gestão e artistas selecionados via chamamento público. No caso das pinturas no túnel, o tema foi aprovado pela relação da via com o Museu da Abolição, que desde 1983 exibe peças do cotidiano do período escravagista.

“Por trás dessas imagens, sob o prisma do cristianismo, isso é demonolatria, que é adoração aos demônios”, afirma o pastor Aijalon Berto.

Painel artístico no Túnel da Abolição, no Recife (PE)

Ao tomar ciência das declarações do pastor, a Rede de Articulação da Caminhada dos Terreiros de Pernambuco repudiou os comentários e decidiu tomar ações judiciais. Auxiliada pela Idafro (Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras), entrou com uma representação junto ao Facebook, dono do Instagram, e protocolou uma denúncia na Secretaria de Defesa Social de Pernambuco.

Coordenadora da rede de articulação, mãe Elza de Iemanjá julga o vídeo do pastor um desrespeito à ancestralidade das religiões afro-brasileiras.

O negro chegou ao Brasil tem mais de 500 anos. Nossa ancestralidade tem que ser respeitada. Se ele me compara a um ser demoníaco e agride uma obra de arte, isso é um ato de agressão estúpida à nossa ancestralidade.

BaIalorixá Elza de Iemanjá, da Rede de Articulação da Caminhada dos Terreiros de Pernambuco

Ao UOL, o pastor Aijalon Berto, que atua na cidade de Igarassu, no Grande Recife, afirmou que seu posicionamento é embasado no cristianismo e na Bíblia. Para ele, a liberdade de expressão lhe garante o direito de pregar a quem quer que seja.

A palavra de Deus é meu arcabouço cristão. Se aquele painel é para reverenciar a cultura, por que não desenharam uma paisagem da África? Tem que fazer a separação do que é cultura e o que é religião. Usar verba pública para promover determinada religião? O Estado não pode fazer isso. Não é uma homenagem à ancestralidade, e sim um fomento à divindade do candomblé. Repudio qualquer ataque a terreiros, quebra de qualquer imagem de religiões, mas a Constituição me permite a pregação do Evangelho.

Aijalon Berto, pastor

Segundo o edital, cada artista recebeu R$ 5.000. Em nota, a prefeitura afirmou que os artistas que participam do trabalho tiveram sua liberdade de expressão assegurada.

O advogado Hédio Silva Júnior, coordenador do Idafro, vê no argumento do pastor Berto uma tentativa de acobertar preconceito.

“Os tribunais fazem uma distinção entre proselitismo religioso e o discurso de ódio. Ele falar bem da religião dele, que é a melhor, a verdadeira, tudo bem. Mas o que está posto nesse vídeo não é proselitismo religioso, é crime de discurso de ódio.”

A jurista Bárbara Lobo, doutora em direitos fundamentais e direitos humanos, explica que declarações que promovem intolerância ou violência contra pessoas ou grupos e sejam fundadas, por exemplo, no racismo, fundamentalismo religioso, LGBTfobia e misoginia são abusivas e violam a liberdade de expressão.

“No caso, as falas contêm conteúdo de intolerância com as religiões de matrizes africanas, expressas em fundamentalismo religioso, que não reconhece a liberdade religiosa. Falas com esse teor, para além da intolerância religiosa, são racistas e configuram discurso de ódio, pois promovem ataques à espiritualidade e religião de grupos da população. Elas negam a ancestralidade africana do povo brasileiro e revelam uma teocracia não admitida pela laicidade estatal”, explicou.

Por outro lado, acrescenta a doutora, a liberdade de consciência e de crença é assegurada como diretriz inviolável da Constituição. Esse direito, porém, não avaliza discursos de ódio.

“O Brasil não é um país evangélico ou neopentecostal, o Brasil é uma nação diversa, multicultural e plural. Temos inúmeras obras de arte fundadas em elementos religiosos e espirituais. Várias dessas são importantes para o turismo, como o Cristo Redentor, os profetas de Congonhas, as Igrejas de Ouro Preto, a basílica de Nossa Senhora Aparecida. Assim como elementos cristãos podem ser representados artisticamente, os elementos de outras religiões também podem, sem que a arte, os artistas e as pessoas que se reconhecem nessas religiões sofram ataques”, disse.

Foto em destaque: Reprodução/ UOL

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