A escravidão no Brasil: 130 anos de mentira

Não tenho nenhuma consideração pela comemoração da abolição da escravatura. E digo mais, depois dos anos escolares acabei sentindo ojeriza por esta data – 13 de maio. Ainda na escola, as aulas que versavam sobre a escravidão pareciam intermináveis, causando-me desespero devido os olhares de “piedade” das crianças brancas em minha direção. E não era somente isto, quando terminavam as aulas, aqueles olhares piedosos davam lugar para a ruindade; a molecada começava a vociferar “a sorte de vocês é que ela não assinou a lápis”. Uma ironia sobre a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, que culminou no fim da escravidão legal no país. Malditos moleques, maldita escravidão.

Depois dos anos escolares comecei a experimentar a violência racial de maneira mais aguda. Involuntariamente, claro. Saiba que em qualquer conjuntura o racismo nunca pede licença, ele se apresenta sempre que os negros buscam a igualdade em direitos com os brancos; seja no mercado de trabalho, política, educação, saúde etc. E buscar a compreensão de como a sociedade estava me percebendo foi questão de sobrevivência, para tanto a consciência negra passou a ser um instrumento de resistência. Nesse encontro acabei descobrindo que as aulas foram uma invencionice acerca da escravidão, cujo conteúdo é usado em todos os espaços da sociedade desde outrora. A escravidão fora tratada como um acidente, e que havia atitudes benignas na relação entre senhores e escravos. Oras, o aviltamento dos africanos e africanas com direito ao estupro destas mulheres, pelos colonizadores portugueses, poderia ser considerado como relação benigna?

Ademais, foi ensinado na escola que a abolição da escravidão era resultado da complacência da Princesa Isabel. Antes desta questão, cabe ressaltar que o período escravista estava circunscrito num movimento onde os africanos e afro-brasileiros travaram duras lutas contra os colonizadores durante os quase quatro séculos de escravidão, e que a resistência africana aconteceu de diversas maneiras – contrário disso, nem seria necessário o uso de grilhões e açoites pelos colonizadores. Sobre a Princesa Isabel, é preciso apontar que ela era parte de um complexo sistema de dominação, portanto a exclusiva vontade individual teria pouca influência. Nesse sentido, a assinatura da Lei Áurea aconteceu como decorrência de um conjunto de fatores: pressões da Inglaterra, ávida em conquistar mercado consumidor; movimentos abolicionistas, pressionando para a eliminação do trabalho escravo; rebeliões de escravos incendiando e fugindo das fazendas, ocorrência de suicídios, formação de quilombos, compra de alforrias, entre outras situações. Importante sublinhar que quando a abolição aconteceu, inúmeros escravos já eram livres, ou seja, mais cedo ou mais tarde, a instituição escravista teria desmoronado.

A história da escravidão deve ser ensinada com todos os sofrimentos inerentes ao período, os movimentos e lutas dos homens e mulheres escravizados, e quais as consequências existentes no pós-abolição. Inadmissível que, depois de 130 anos de abolição, a história continue sendo um embuste. O Estado precisa assumir a verdadeira história e motivar reflexões em toda a sociedade, sobretudo, nas instituições escolares, ressaltando a dívida histórica com os afro-brasileiros. Caso contrário, continuaremos presenciando o aumento das estatísticas de corpos negros sendo mortos ou partícipes da miséria no Brasil; a população negra ainda carece de cidadania plena.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Salvem suas lives!

Você já parou para pensar em quantas lives assistiu...

A caridade é branca. A dor é PRETA.

Oi minha querida neta, tudo bem com você¿Sim! Estou...

Da espantosa humanidade dos negros

A recente eleição de Fernando Holiday, uma das lideranças...

“Ninguém me ensinou a ser branco”: frase de um professor de Jundiaí

Quando soube, através de um homem negro, também professor,...

para lembrar

Precisamos olhar para os nossos ancestrais, em especial, ainda vivos

Assistindo ao documentário AmarElo, não pude não pensar na...

Dez anos da Lei de Drogas: narrativas brancas, mortes negras

De onde vem a atual Lei de Drogas por Nathália Oliveira...

Um Solo Para Solano – Espetáculo faz um mergulho na obra do poeta Solano Trindade

2016 já é um ano especial. Comemoro 15 anos...

Sem ações concretas, antirracismo branco é enganação

O negro neste país está acordado, alerta, e vai continuar sua luta sempre. Isto é um processo irreversível! - Abdias do Nascimento De uns tempos pra cá...

Negra sim!?

Cresci sem me reconhecer como criança negra, apesar dos inúmeros apelidos ofensivos, referentes ao meu cabelo, minha pele não é retinta e isso me...

A importância da Educação Básica para a Promoção da Equidade Racial – Um Chamado!¹

Inicio minhas reflexões ressaltando minha admiração pelos (as) profissionais da educação básica, segmento do qual eu faço parte. Exalto o comprometimento das professoras, e...
-+=