Desde o início da pandemia, especialistas alertam que as mulheres estão entre os grupos mais vulneráveis aos efeitos da crise gerada pela Covid-19. Por isso, na semana de 10 a 15 de agosto, Celina publica uma série de matérias e entrevistas em que 11 brasileiras — todas entre 18 e 24 anos, pertencentes a regiões e classes sociais diferentes — contam como veem o futuro de sua geração. Elas refletem sobre seus sonhos, preocupações e expectativas, revelando como o novo coronavírus atinge as vidas das jovens mulheres brasileiras.
Leia a entrevista com Julia Aquino:
Julia Aquino, de 23 anos, é estudante de Psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mulher com deficiência física e ativista. Ela também é criadora da página no Instagram Milita PCD, na qual publica textos informativos e reflexivos sobre o tema.
— Não foi nada planejado, começou com uma implicação minha de querer falar e de muita gente me perguntar questões que eu achava que fossem comuns, como o próprio capacitismo, o preconceito com pessoas com deficiência. Senti a importância de falar sobre isso — explica a estudante.
Ela também escreve para um blog feminista e faz parte, com dois amigos, de um projeto online que promove a divulgação de trabalhos de pessoas pertencentes a minorias sociais, o Reverter. Durante a pandemia de coronavírus, Julia teve suas aulas na universidade paralisadas e sentiu o impacto do distanciamento, já que mora sozinha.
Em entrevista à CELINA, Julia Aquino fala sobre a visibilidade das mulheres com deficiência dentro do movimento feminista, os impactos da Covid-19 em sua rotina e a preocupação com os efeitos psicológicos futuros, devido à sobrecarga a qual as mulheres foram submetidas nesse período.
CELINA: Você se apresenta, nas redes sociais, como feminista. Acredita que o movimento feminista inclua as mulheres com deficiência e outras interseccionalidades?
JULIA AQUINO: É bem importante falar sobre isso. Me coloco como feminista, mas não tenho uma linha teórica que eu siga, a que me contempla mais é o interseccional por ter essas várias outras interseccionalidades dentro de mim. Sou uma mulher preta, com deficiência, lésbica. Eu costumo dizer que sou feminista PCD [pessoa com deficiência]. Não vejo uma inclusão de mulheres com deficiência, negras, gordas ou qualquer outra interseccionalidade nas pautas feministas. Para mim foi complicado ter que aceitar que me interesso pelo feminismo, porque eu tentava buscar assuntos que me pertencessem e me abraçassem, mas não conseguia. A mulher com deficiência nunca era lembrada. Estamos na luta para que haja esse reconhecimento. Existe hoje o Coletivo Helen Keller, já fui a algumas reuniões e tenho amigas que participam.
A pandemia teve impactos específicos para as pessoas com deficiência?
A gente costuma falar, nesse momento de pandemia, que as pessoas com deficiência já viviam uma quarentena, de certa forma. Muitas vezes, a gente é deixado de lado. Tem lugares que a gente não pode ir por conta da acessibilidade, são várias questões. Às vezes, precisamos de pessoas para nos levar aos lugares. Dependendo da deficiência, a gente já vive essa quarentena ao longo da vida.
Quais foram os impactos da pandemia ou da crise provocada por ela na sua vida?
Acho que o maior impacto para mim foi o distanciamento. Eu moro sozinha, tenho uma moça que faz as coisas aqui em casa e precisei, por questão de segurança minha e dela, diminuir a quantidade de vezes que ela vinha. Falei que se ela não pudesse vir tudo bem, mas que se pudesse seria bom, porque não tenho como lavar banheiro e cozinha, por exemplo. E a questão da solidão também, tenho sentido isso muito forte. Estou mais sozinha do que já estava, mesmo morando sozinha. Não tenho tido contato com ninguém, não saio na rua desde março, nem para serviços essenciais; não vou nem ao portão de casa. Acho que foi um dos maiores impactos. Financeiro teve um pouco, mas não muito, porque conto com dinheiro do governo federal.
E suas aulas, foram paralisadas?
Sim. É por isso que sinto mais falta. Eu sempre estava na faculdade, fazia aula de segunda a sexta e, quando chegava o final de semana, estava com meus amigos. Depois que passei a morar sozinha, entendi que não precisava estar sozinha, então criei essa rotina de estar sempre fora. A quarentena abalou isso. A UERJ está estudando ter aula remota a partir de setembro, mas ainda não é certo.
Quais são suas expectativas para o futuro?
Eu acho que o momento da pandemia com certeza vai atrasar um monte de planejamentos. Os meus planos para esse ano eram ter viajado para o Pará, onde minha irmã mora. Planos de ir para São Paulo conhecer, porque tenho amigos lá. Tudo isso mudou. O que eu espero é que a gente possa retornar com segurança o mais breve possível. A pandemia tem adoecido muito a gente, e essa angústia de não saber como vai ser nosso futuro, se vamos conseguir realizar nossos sonhos. Tem uma sensação ruim de não saber o que esperar, mas ao mesmo tempo tenho confiança de que tudo tem que melhorar.
Quais eram seus sonhos ou objetivos antes da pandemia? O contexto atual mudou seu projeto de vida?
Meus planos são voltar para a faculdade e para minha rotina. Tenho muitos objetivos para depois da pandemia. Quero poder aproveitar mais, porque sinto que deixei de aproveitar muitas coisas. Tenho vontade de começar novos projetos, investir em mim, nas coisas e pessoas de que gosto. A longo prazo tenho vontade de ter minha própria clínica de Psicologia; ter o meu carro porque, por ser cadeirante, é difícil a locomoção aqui no Rio, no transporte. Tinha vontade de tirar carteira esse ano, mas ficou para depois. Ter meu espaço também, porque hoje vivo de aluguel e com essa crise tudo tem ficado complicado, os preços têm aumentado. Quando a gente é PCD, requer recursos, cadeira, cama de qualidade, casa que tenha espaço e banheiro adequado, coisas assim. O básico para a nossa vida, mas que é muito custoso. Então tenho objetivo de poder ser o mais autônoma possível.
Como você acha que a pandemia vai afetar as mulheres da sua geração?
Vivendo essa pandemia talvez algumas pessoas criem um pouco de senso de coletividade, passem a olhar para o outro de forma diferente. A gente tem visto que, mesmo com muito egoísmo, que sempre vai existir, temos muitas pessoas fazendo coisas para o coletivo. Acredito e espero que a nossa geração possa cada vez mais ter esse senso de empatia.
E para as mulheres tenho percebido que elas têm tido papel ainda mais forte na pandemia. Nós sempre tivemos a imagem da cuidadora, a que faz tudo, mas eu vejo que as mulheres têm se abalado mais por conta da pandemia. Acredito que isso possa ser impactante na saúde mental dessas mulheres, mas espero que a gente consiga arrumar uma forma de que elas, principalmente as que têm mais dificuldade financeira, tenham acolhimento depois. Espero que elas possam receber os cuidados que estão tendo que dar hoje.