‘Está começando a segunda parte do inferno’, diz líder quilombola do RS

Jamaica Machado critica falta de assistência do estado e descreve quadro desolador no Quilombo dos Machado, em Porto Alegre

“Está começando a segunda parte do inferno”, com esta frase, Jamaica Machado, líder do Quilombo dos Machado, de Porto Alegre, resumiu, com certo desânimo, a nova etapa do trabalho de reconstrução de sua comunidade, após a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul.

O núcleo, onde vivem 260 famílias, é reconhecido como quinto quilombo urbano de Porto Alegre, localizado no bairro Sarandi, zona norte da cidade, uma das regiões mais afetadas pelas chuvas. No local, cerca de 40% dos domicílios tiveram danos irreparáveis e perda de mobiliários.

Conversei com Jamaica, por telefone, no final de semana. O quadro descrito por ele é desolador, sobretudo pela falta de assistência das autoridades do município e do estado, segundo alega.

“Com relação aos quilombos urbanos, como o Dos Machado, nós tivemos 40% de todo o território devastado, inundado, praticamente submerso. As pessoas não chegaram a perder suas casas, mas perderam tudo o que tinham dentro delas.”

Sobre a tragédia, sem precedentes em sua memória, tendo por base a ocorrida no ano de 1941, ele diz:

“Foi caos total, destruição total. Quase todas as comunidades quilombolas tiveram perda total, destruição total. A situação é desoladora.”

Reclama ainda que falta de tudo, pois o que recebem de doações, graças ao esforço dos movimentos negro e social, não chega a atender às necessidades da população, cuja demanda é muito grande. Jamaica chama o trabalho que está fazendo, para conseguir ajuda, de “força-tarefa”, que tem sido ampliado para atender o seu entorno, caso do vizinho Areal e vilas próximas, onde também vive “gente preta e pobre” —não necessariamente quilombola.

De acordo com o Censo Demográfico de 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Rio Grande do Sul possui hoje 17.496 pessoas que se autodeclaram quilombolas, maior percentual da região, à frente do Paraná (7.113) e de Santa Catarina (4.447), no universo de 145 quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares, o que compreende 70 municípios do estado.

Jamaica Machado faz questão de reforçar o que classifica como abandono do estado e do município à sua comunidade. A situação já era esperada, diz quase se conformando.

“A posição dos governos —estadual e municipal, no caso de Porto Alegre— nunca foi pela periferia ou pelas comunidades quilombolas e, mesmo, pelas comunidades indígenas, que aqui também existem. O poder público tem descaso total com a população preta, a população periférica.”

A revolta do líder do quilombo surge em reação à fala do governador Eduardo Leite (PSDB), que em entrevista para a GloboNews, relatou que o estado “não tem a estrutura suficiente para atender em todas as pontas”, se referindo aos quilombolas.

“Nós já sabíamos. Mas isto só nos dá força para lutarmos contra esse Rio Grande do Sul racista, hipócrita, que não gosta de preto, que não gosta de povo de terreiro, que não gosta de indígena, não gosta de quilombola. Mas a gente está aí para se fortalecer, enquanto verdadeiro povo de luta.”

O líder também se mostrou preocupado com a volta às aulas das crianças, já que muitas escolas ficaram completamente destruídas com a violência da inundação.

Apesar do nervosismo e da insegurança generalizada, Jamaica mantém a convicção de que vai sair vitorioso dessa situação.

“O Quilombo dos Machado continua aí, na persistência, na resistência, para que a gente possa cada vez mais ter uma vida digna, do nosso modo, do nosso jeito, com a nossa ancestralidade, se fortalecendo todos os dias.”

Em meio a tanto desalento, surge sempre uma mão amiga. É o caso da gestora de projetos Cláudia Dutra, atual secretária da diretoria executiva do Codene (Conselho Estadual de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra). Ela e outras três pessoas atuam como voluntários, no atendimento às vítimas, e percorrem, em um único carro, comunidades que necessitam de assistência emergencial, como o fornecimento de água e cestas básicas.

Na segunda-feira (20), por exemplo, Dutra distribuiu, pelo Codene, com o apoio do Ministério da Igualdade Racial (MIR), da FACRQ (Federação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado) e do Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos), 600 cestas no Quilombo dos Machado —três unidades por família —, onde encontrou o líder Jamaica, agradecido e mais esperançoso.

A calamidade trouxe vulnerabilidades para toda comunidade quilombola e seus remanescentes. Sobre isso, Dutra esclareceu:

“Ainda não dá para ter um diagnóstico sobre a dimensão dos danos, ou sobre quantas casas foram destruídas e qual o montante de recursos necessários para a reconstrução. Estamos falando de bairros inteiros, até de pequenas cidades. E a catástrofe está longe de ser superada. Ainda vamos enfrentar muitos desafios, assim que as águas baixarem. O nosso foco e a nossa prioridade no momento é atender o maior número de famílias, dentro e fora do perímetro, e minimizar, o máximo possível, o flagelo da fome.”

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