Eu queria escrever um texto que trouxesse muitos dados sobre o quão racista o mundo e o Brasil são. Uma matéria que agradasse a militância negra e ao mesmo tempo fizesse as pessoas brancas refletirem sobre seus privilégios. Um texto em que eu conseguisse explicar com clareza o quanto o racismo explícito e o velado podem prejudicar a vida de uma pessoa. Mas talvez eu não consiga. Já adianto que estou bem cansada.

A cantora Tássia Reis tem uma música que diz o seguinte:

“Num quadro triste, realista
Numa sociedade machista
As oportunidades são racistas

São dois pontos a menos pra mim
É difícil jogar
Quando as regras servem pra decretar o meu fim”

Eu confirmo que esse jogo tá muito difícil mesmo. Eu, como mulher negra, sou constantemente relembrada pelas manchetes de jornais que a taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros subiu 18,2%, enquanto para cidadão não-negros caiu 12,2%. E também que minhas chances de entrar nas estatísticas do feminicídio são maiores do que a de mulheres brancas. O número de assassinatos de mulheres negras subiu 54%, enquanto o de brancas caiu 9,8%, segundo o Mapa da Violência de 2015. Seria “coitadismo” ou “mimimi” saber ler e interpretar o que dados e pesquisas de órgãos sérios mostram tão claramente? As regras do jogo são claras e quem está em desvantagem as sabe de cor.

Quando esses dados se transformam em histórias de pessoas reais, eu as recebo pelas redes sociais e sites de notícias. São relatos pessoais dos meus amigos ou histórias de pessoas desconhecidas, e eu confesso que muitas vezes não abro. Paro ali mesmo na leitura da manchete. Não por falta de interesse, mas por tristeza mesmo. Entendam que quando eu li a notícia da morte da estudante Maria Fernanda eu chorei muito. Caso você não se lembre, Maria Fernanda era uma menina de 13 anos que foi atingida por três balas perdidas na quadra de sua escola. Curioso como bala perdida acha mais fácil o caminho para os corpos negros, não?

Ubuntu é uma palavra africana que tem origem na língua Zulu. Ela pode ser traduzida como “Eu sou porque nós somos” e é bastante utilizada pelo movimento negro. E foi por isso que eu chorei tanto pela morte da Maria Fernanda. Eu deixei de ser tão otimista e inocente quando li a notícia de sua morte. Para mim, não foi mais um caso do assassinato do povo negro e periférico, foi o assassinato do MEU povo negro e periférico. Poderia ter sido eu, meu irmão, meus primos e primas. Mas por enquanto não foi. Foi a Maria Fernanda e ainda choro quando lembro da menina que morreu estudando. Afinal, é através dos estudos que nós vamos conseguir “conquistar os nossos sonhos”, pegar um diploma e ganhar 47% a menos que as pessoas brancas. E pra muita gente, ainda temos que dar graças a Deus por ter um emprego.

Nas últimas semanas, publicações nas redes sociais, conversas em grupos de amigos e em sala de aula giravam em torno do comentário racista do William Waack e do espancamento do Diogo Cintra, um jovem negro confundido como ladrão e espancado. Demorei para ler qualquer matéria a respeito do jornalista e não tive forças para chegar ao final do relato do Diogo. E o que eu fiz enquanto meus amigos (brancos) conversavam e se indignavam a respeito? Eu não fiz nada. Não disse palavra. Não compartilhei um post. A tristeza e a revolta eram tão grandes que eu tinha medo de abrir a boca e só sair um grito. E meu medo era esse grito doer tanto em mim e não atingir quem merecia escutá-lo. Mas guardar o grito dentro do peito também não me fez nada bem. Por isso, eu escrevo.

Mas já faz um tempo que eu percebi que escrever sobre o racismo que sofro também dói muito. Todas as reações à minha escrita me doem. Quando ignoram, dói porque eu sinto que não atingi quem gostaria. Quando falam que ficou lindo, dói porque não quero que confundam meu desabafo com poesia. Quando alguém se identifica, dói porque é triste saber que outras pessoas estão passando pelo mesmo problema. Quando comentam que eu repito o mesmo “mimimi” de sempre, dói também. Com licença, se está doendo, eu vou continuar gritando sim!

Entretanto, às vezes eu não quero gritar, não quero escrever textos, não quero marchar pelas ruas, não quero ser chamada para opinar se isso ou aquilo é racista, não quero responder para as minhas amigas brancas se elas podem usar turbante, não quero usar tranças coloridas e ser a negra mais estilosa que você conhece. E não fazer tudo isso não me faz menos negra do que quem está ativa na militância. Em certos dias, a única coisa que quero fazer é sair pra almoçar e desabafar baixinho com uma amiga negra, conversar sobre beleza afro com outro amigo e rir da época em que alisávamos o cabelo, ficar sozinha ouvindo as músicas maravilhosas de novos artistas negros brasileiros. Às vezes, escrever o texto em que mostro minha fragilidade e tento desmistificar a ideia de que toda mulher negra é forte é tudo o que consigo.

Não sei se esse texto ajudou alguém a entender melhor o racismo ou se fez com que alguém se identificasse. Talvez não tenha ficado tão bom porque a verdade é que eu cansei de escrever, cansei de tentar traduzir em palavras o racismo que vejo por aí. Cansei de sentir dor. Cansei de verdade. Mas aí penso que só tenho 22 anos e que ainda vou ver muita coisa ruim nesse mundo. Lembro de quem tá há muito mais tempo nessa luta, penso nas vitórias que já conseguimos.

Estou muito cansada sim, e acho que daqui pra frente isso só vai aumentar. Mas tenho certeza de que os negros escravizados que fugiam das fazendas estavam bem mais cansados do que eu enquanto caminhavam por dias ou semanas a procura de um quilombo. Apesar disso eles não paravam de caminhar em busca de sua terra prometida. Portanto, eu também não vou parar.

*Nairim Bernardo é estudante de teatro e jornalismo e estagiária da Nova Escola